A ENCÍCLICA Rerum Novarum E O
DIREITO DO TRABALHO
ADILSON GURGEL, advogado
INTRODUÇÃO
Muito se fala sobre as
conquistas do trabalhador.
Muito se fala sobre as
conquistas do Direito do Trabalho e dos Direitos Sociais.
Pouco se fala que essas
conquistas e esses ramos do Direito são muito recentes e quase nada se fala do
seu nascedouro.
Pouco se fala da
importância de uma certa encíclica do Papa LEÃO XIII, promulgada no final do
Século XIX. Mas ela tem tudo a ver com o Direito do Trabalho. Muito mais do que
diversos doutrinadores jus laboristas.
Por isto, vamos mostrar
aqui que existe um grande relação entre a encíclica Rerum Novarum – RN e
o nascedouro das legislações que impulsionaram a criação deste novo ramo do
Direito.
Mas, vamos começar com um
fato real, vivenciado pelo autor: certa feita, uma amiga solicitou a leitura de
sua dissertação de mestrado. Ao verificar que dizia respeito ao Direito do
Trabalho, ponderou-se que este autor lida um pouco mais sobre tributos e o
Direito Tributário. Mas, ela insistiu: queria a visão de um acadêmico “fora da
bolha”.
Pela leitura, verificou-se que as pugnadas
conquistas do trabalhador ali defendidas deixavam a desejar. Indagou-se se ela
já havia lido a encíclica Rerum Novarum, de 1891 – a qual, procurou-se
mostrar, possuía princípios muito mais avançados do que as teses doutrinárias
expostas na dissertação.
Como ela não havia lido –
inclusive e por óbvio, não constava da sua biografia – entregou-se um exemplar
do documento. Após a leitura, ela disse que havia mudado quase que radicalmente
a sua dissertação, tão impactada que ficou com a leitura da encíclica.
A
SITUAÇÃO DOS OPERÁRIOS NO SÉCULO XIX
Total
desrespeito à dignidade do ser humano
Inicialmente, vamos dar
uma panorâmica de como estava a questão social, que motivou a promulgação da
encíclica leonina.
Com efeito. É por demais
sabida a situação de penúria dos operários e de desrespeito à dignidade do ser
humano, que prevalecia no Século XIX, em especial após a Revolução Industrial e
o nascimento do Capitalismo, com o consequente acúmulo de riquezas: poucos com
muito para viver e muitos com muito pouco para sobreviver.
O historiador H. G. WELLS,
na sua História Universal, descreve bem o que ocorria:
À
medida que a revolução Industrial progrediu, um grande fosso se foi cavando
entre empregador e empregado. (1968:vol. 3º, p. 103),
Para se ter uma ideia do
quanto o ser humano era espezinhado, ressalte-se que somente em 1819, na
Inglaterra, foi promulgada a primeira Lei das Fábricas (Factory Act),
tentando diminuir a bestialidade dos empregadores contra seus empregados.
Parece
incrível que fosse jamais necessário proteger criancinhas de nove anos (!)
contra o trabalho em fábricas, ou limitar o dia nominal de trabalho desses
empregados a doze horas!
A
lei industrial inglesa, de 1819, fraca e débil como nos parece hoje, foi a Carta
Magna da infância; começou daí a proteção das crianças dos pobres, primeiro
contra o trabalho excessivo e depois contra a fome e a ignorância. (WELLS, 1968:vol. 3, p. 284-285).
Tentativas foram
feitas para conter essas ganâncias desumanas, baseadas nas ideias socialistas
advindas dos ensinamentos de BUDA, de LAO TSE e, mais claramente, de JESUS
CRISTO. E, como se mostrou na introdução deste trabalho, tivemos as ideias
materialistas de MARX, de ENGELS e, posteriormente, de LENIN.
No entanto, a
situação só tendia a piorar a cada dia.
Tendo presente
essa visão, o Santo Padre LEÃO XIII, resolveu enfrentar a questão social e fez
promulgar sua carta encíclica RERUN NOVARUM (RN), em 15 de maio de 1891.
Pode-se dizer: trata-se de um documento revolucionário, pois a Igreja se
preocupava mais com sua missão de divulgar o Evangelho. E eis que surge uma
forte instituição em prol da dignidade do ser humano, em especial da classe
operária. Daí sua encíclica chamar a se vivenciar Coisas Novas, com o
subtítulo de “Sobre a condição dos operários”.
A
DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA – DSI
Que
o ser humano seja construtor responsável pela sociedade terrena
Antes de
adentrarmos especificamente na Rerum Novarum e, depois, sua influência
sobre o Direito do Trabalho, é interessante mostrar o que vem a ser a DSI –
Doutrina Social da Igreja.
Inicialmente: como
podemos definir o que vem a ser a DSI?
Fomos
buscar um conceito que foi dado pelo Papa SÃO JOÃO PAULO II, na sua encíclica Solicitudo
Rei Socialis – SRS (Solicitude Social), quando mostra que, a partir do
valiosíssimo subsídio de LEÃO XIII e enriquecido por sucessivos documentos
magisteriais, temos que a DSI se constituiu já:
Um corpo doutrinal
atualizado, que se articula à medida que a Igreja, dispondo da plenitude da
Palavra de Deus revelada por Jesus Cristo e com a assistência do Espírito Santo
(cf. Jo 14, 16-26 e 16, 13-15) vai lendo os acontecimentos, enquanto eles se desenrolam
no decurso da História.
Deste modo, ela
procura guiar os homens para corresponderem, com o auxílio também da reflexão
racional e das ciências humanas, à sua vocação de construtores responsáveis
pela sociedade terrena. (SRS 1)
Ao
que pedimos vênia para acrescentar: e colocando sua opinião em prol da
dignidade de todos os seres humanos.
Assim
é que, no mundo jurídico, muito se elogia o surgimento e o desenvolvimento do
Direito do Trabalho, como instrumento de proteção e garantia dos direitos dos
próprios trabalhadores. Muito se elogia pensamentos e doutrinas trazidos por
pensadores do Direito, da Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica, das
demais Ciências Sociais e até de quem nunca fez coisa alguma por esse
importante ramo do Direito.
Entretanto,
parece que se desconhece um dos nascedouros desse importante e relevante ramo
do Direito e de tantas outras conquistas sociais, o que veio com o advento da
Doutrina Social da Igreja. Nascimento esse que se deu com a promulgação da
encíclica Rerum Novarum (RN), do Papa LEÃO XIII, publicada no dia 15 de
maio de 1891. Portanto, no final do Século XIX.
Lembrando
que as encíclicas são cartas escritas e promulgadas pelo Papa, sendo destinadas
não só aos fiéis católicos, mas também a todas as “pessoas de boa vontade”.
Normalmente elas abordam problemas sociais do mundo contemporâneo e também
questões de fé e de moral. Como um bom exemplo desta última abordagem, temos a
encíclica Fides et Ratio – FR (1998), do Papa SÃO JOÃO PAULO II.
Ele, com amparo principalmente nos ensinamentos do jesuíta Padre PIERRE
TEILHARD DE CHARDIN (no seu livro O Fenômeno Humano) e na sabedoria
teológica do então Cardeal JOSEPH RATZINGER (depois Papa BENTO XVI) abordou o
delicado tema da conexão ou da ligação entre Fé e Razão.
É
válido lembrar também que, como ÉMILE DURKHEIM
(sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo, além
de profundo estudioso das questões sociais e considerado o pai da Sociologia) –
talvez em virtude de ter lido o documento leonino (e isto é uma mera conjectura
deste autor), observando que havia uma lacuna na sua tese de doutorado, redigiu
um prefácio à 2ª edição do seu livro De la Division
du Travail Social (1893). Prefácio esse (intitulado por DURKHEIM
de Algunas indicaciones sobre los grupos professionales) que quase se
tornou mais importante do que o livro em si. Na realidade, o fato é que essa
lacuna, na sua tese, era não ter mencionado a importância das associações
profissionais. Com isso, DURKHEIM escreveu esse prefácio ressaltando a
importância dos sindicatos, imaginando-os, inclusive, como elo de ligação entre
o povo e o governo.
Pero esta acción, si es necessaria, no debe degenerar
em uma subordinación estrecha, como ocurió em los siglos XVII e XVIII. Los dos
órganos em relación deben permanecer distintos: cada um de ellos tiene sus
funciones que sólo él puede cumprir.
(1967:25)
Em reforço a esse
posicionamento, o Papa PIO XI, em 1931, ao comemorar os 40 anos da RN,
agora na sua encíclica QUADRAGESIMO ANNO (QO), mas citado pelo
Papa SÃO JOÃO XXIII, no item 21, da encíclica MATER ET MAGISTRA (MM), de
1961, estabelece que:
Aos trabalhadores,
afirma ainda a Encíclica (RN), reconhece-se o direito natural de constituírem
associações ... e ainda o direito de agirem, no interior delas, de modo
autônomo e por própria iniciativa, para assegurarem a obtenção dos seus
legítimos interesses.
A
contribuição da RN para a criação de sindicatos livres e independentes é
uma pequena amostra do como a DSI ajudou a construir os direitos sociais dos
trabalhadores em todo mundo democrático.
Antes
de continuar, enumera-se os princípios basilares, que fomentam até hoje a DSI,
mostrando como toda ela objetiva a proteção dos operários e a dignidade do ser
humano.
Este resumo foi em parte inspirado no que fez o
Papa SÃO JOÃO XXIII, na sua encíclica Mater et Magistra (MM). Esses
princípios dizem respeito:
1) Ao trabalho que não pode ser considerado
como mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Como
que para quase todos o trabalho é o único meio de subsistência, a sua
remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do mercado.
Sim, ela deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da equidade.
2) À propriedade privada, mesmo dos bens
produtivos, é considerada como um direito natural que o Estado não pode
suprimir. Mas, chama a atenção para o fato de que ela, intrinsecamente,
comporta uma função social, sendo igualmente um direito, que se exerce em
proveito próprio e para bem dos outros.
3) Ao Estado, considerando que ele tem sua
razão de ser na realização do bem comum na ordem temporal. Por isto, ele tem
que intervir na ordem econômica, com o objetivo de promover a produção
suficiente de bens materiais, cujo uso é necessário para o exercício da
virtude. O Estado tem também a missão de proteger o direito de todos os
cidadãos, em especial os mais fragilizados (MM, item 19).
4) Ao Estado, instando a que vele pelas
relações do trabalho para que elas sejam reguladas segundo a justiça e a
equidade, com o indispensável respeito à dignidade da pessoa humana. Com isso e
com outros tópicos, a encíclica leonina indicou linhas que inspiraram a legislação
social dos Estados contemporâneos. Tais linhas foram de tanta importância, que
o Papa PIO XI já chamava atenção, na sua encíclica Quadragesimo Anno, que eficazmente contribuíram para o
aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o "direito
do trabalho". (MM, item 20)
5) Aos trabalhadores é reconhecido o direito
natural de constituir e reunir-se em associações, para assegurarem a obtenção
dos seus legítimos interesses econômico-profissionais. Torna-se imperativo
demonstrar que aqui está a origem dos modernos sindicatos. (MM, item 21)
6) Aos operários e empresários é imperativo que
regulamentem as relações mútuas, inspirando-se no princípio da solidariedade
humana e da fraternidade cristã. E desde lá a DSI afirma que tanto a
concorrência de tipo liberal como a luta de classes no sentido marxista são contrárias
à natureza e à concepção cristã da vida. (MM, item 22)
Passemos
agora a novas considerações, especificamente sobre a RN, em reforço do
que ora se argumenta. Obviamente sujeito à apreciação dos doutos.
A
ENCÍCLICA RERUM NOVARUM – 1891
O
início da DSI
Críticas
à questão operária
A encíclica Rerum Novarum distingue-se das
demais por ter dado a todo o gênero humano regras seguríssimas para a boa
solução do espinhoso problema do consórcio humano, a chamada “questão social”,
precisamente quando isso era mais oportuno e necessário. (Papa PIO XI, logo
no início da sua encíclica Quadragesimo Anno, de 1931)
A RN é tida
como o documento que iniciou a DSI – Doutrina Social da Igreja.
PARÊNTESIS: o leitor que não
possuir a Rerum Novarum, pode baixá-la direto do sítio do Vaticano, no
endereço: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html
Como aqui veremos,
ela ataca as injustiças e desigualdades provocadas pela Revolução Industrial,
do Século XIX, criticando também as soluções teóricas apontadas pelo socialismo
e pela luta de classes. A encíclica leonina defende firmemente os direitos dos
trabalhadores, mostrando a dignidade do trabalho e da pessoa humana. Também
defende o direito à propriedade privada, exaltando seu uso social. Por último, como
demonstrado, semeou a ideia dos atuais sindicatos de trabalhadores, ao defender
a formação de associações profissionais.
Não resta dúvidas
de que esta encíclica é a mais popular e a mais debatida, por mais de um
século, em especial por tratar da chamada “questão social”. Alguns chegam a
afirmar que a Rerum Novarum foi para a ação social cristã, o que foi o
manifesto dos Comunistas (1848) ou o Capital, de MARX, para a ação
socialista. Mas, é o documento mais importante para as conquistas sociais do
ser humano. Sem dúvida.
Corroborando um
tal pensamento, na encíclica Mater et Magistra (1961), o Papa São JOÃO
XXIII, assim se manifestou sobre a “imortal encíclica Rerum Novarum, que
completava 70 anos”:
7.
Poucas vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela
profundeza e vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da
expressão. A linha de rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se
de tanta importância, que não poderão jamais cair no esquecimento. Foi aberto
um caminho novo para a Igreja. O Pastor supremo, fazendo próprios os
sofrimentos, as queixas e as aspirações dos humildes e dos oprimidos, uma vez
mais se ergueu como defensor dos seus direitos. (MM, item
7)
Se
não, vejamos a grande influência social e humanitária advinda do que diz essa
encíclica com mais de 130 anos de existência e de formação de muitas conquistas
sociais, nela inspirados.
A ENCÍCLICA RERUM NOVARUM E
O DIREITO DO TRABALHO
Um documento à frente do seu tempo
Pelas
citações acima, verifica-se que o documento estava bem à frente do seu tempo!
Ou que chegou na hora certa.
Verifica-se
também que a encíclica leonina como que “chamou o feito à ordem”, exigindo um
posicionamento do Estado frente ao descaso com que os operários eram tratados e
humilhados. Depois dela passamos a ter o Estado efetivamente intervencionista
na vida econômico-social da sociedade política.
Ao
final, nas conclusões, faz-se um resumo dos pontos fortes ou os princípios aqui
defendidos e que foram parar na legislação trabalhista e na legislação social.
Mas,
ainda nesta introdução, transcreve-se, a respeito da encíclica leonina, o que
escreveu BRUNNA RAFAELI LOFITE CASTRO (2010), depois de mostrar que a Rerum
Novarum é um documento que deu início à terceira fase do Direito do
Trabalho, chamada de “fase de consolidação”:
Essa Encíclica
destaca a necessidade de uma nova postura das classes dirigentes perante a
chamada “Questão Social”, que trazia em seu texto as obrigações de patrões e
empregados, fixando o salário-mínimo, a jornada máxima, enfatizando o respeito
e a dignidade da classe trabalhadora, tanto espiritual quanto fisicamente. Por
outro lado, o operário deveria cumprir fielmente o que havia contratado, nunca
usar de violência nas suas reivindicações, ou usar de meios artificiosos para o
alcance de seus objetivos. Neste momento, busca-se também uma intervenção
estatal nas relações de trabalho.
Verifique-se
que a autora chama a atenção para um ponto importante, que ressaltamos neste
texto, é o fato de que o Papa LEÃO XIII, na sua Rerum Novarum, ter tido
a coragem de determinar que deveria haver uma intervenção estatal nas relações
de trabalho. E não ficar apenas olhando toda espoliação do trabalhador e todo
desrespeito com a dignidade do ser humano por parte dos ricos e poderosos.
Podemos então afirmar que tal determinação serviu também para provocar o
nascimento do chamado Estado Intervencionista. Preferentemente democrático e de
direito.
Com a anotação específica
dos itens da RN que interessam ao presente estudo, vamos comentar os
avanços sociais obtidos com a promulgação da mais que centenária encíclica:
ITEM 22 à OBRIGAÇÕES E
LIMITES DA INTERVENÇÃO DO ESTADO
Provocou a mudança do Estado do Laissez
Faire para o Estado Intervencionista
Sugeriu a criação da previdência social
pública
Invoca
a autoridade da lei, pois este item mostra que em todos os casos de excessos
contra os mais fracos, bem como nos atentados contra a saúde, em virtude do
trabalho em excesso, desproporcional à idade e sexo dos operários,
à é absolutamente necessário
aplicar com certo limite a força e autoridade das leis.
Ao
final, lembra: já que a classe rica faz da sua riqueza uma fortaleza e precisa
menos de proteção pública, ressalta algo essencial para os menos afortunados,
ao dispor que:
à o Estado se faça pois, sob um particularíssimo
título, a previdência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.
Estava aberto, assim, o
caminho para as ideias e ideais sociais de uma maior proteção ao trabalhador,
em especial na aposentadoria e na velhice, com os benefícios da previdência
social pública.
Este
item da RN, foi posteriormente reforçado, 70 anos depois, pela encíclica
Mater et Magistra (de 1961). O Papa SÃO JOÃO XXIII nela afirma que compete
ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo
a justiça e a equidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja lesada,
nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana.
Ele
também relembra que, a este propósito, a encíclica leonina aponta as linhas que
vieram a inspirar a legislação social dos estados contemporâneos: linhas, como
já observava o Papa PIO XI na encíclica Quadragesimo Anno, que eficazmente contribuíram para o
aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o
"direito do trabalho".
ITEM
23 à
O ESTADO DEVE PROTEGER A PROPRIEDADE PARTICULAR
Para
que se faça o bom uso da mesma e para garanti-la ao operário
Tal
como já havia chamado a atenção no item 5, a encíclica RN volta a
ressaltar que é dever principalíssimo dos governos assegurar a propriedade
particular por meio de leis sábias. Com isso protege-se aquela parte dos
operários que desejem melhorar de condição, mas utilizando-se de meios
honestos, sem utilizar a violência e sem prejudicar a ninguém.
A
crítica é feita aos que pretendem invadir direitos alheios sob pretexto de
não sei que igualdade.
A encíclica dá um
especial ênfase a essa proteção da propriedade particular não como abençoando
os muito ricos que fazem mal uso de suas posses, mas lembrando de forma
especial do pobre operário que trabalha e sonha com uma “vida melhor” para ele
e para os seus. Como dito: utilizando-se de meios honestos, sem utilizar a
violência e sem prejudicar a ninguém.
ITEM 24 à IMPEÇA AS GREVES
O Estado deve fazê-lo ao prover os meios
de solução pacífica dos conflitos
A
crítica que a encíclica faz a esta desordem grave e frequente, pode
parecer estranho aos olhos de alguns. Mas fato é que que essa observação foi
feita porque havia uma grande convulsão popular à época – Século XIX – em
virtude de os operários serem muito explorados pelos donos do capital. E a
greve era (como ainda é) uma forma de chamar a atenção para problemas graves
e frequentes.
Pela
leitura atenta deste item, verifica-se que a intenção leonina é buscar a forma
correta de impedir as greves, tomando as medidas necessárias para elas sejam
evitadas pela falta de motivos ou mesmo suprindo os motivos para elas serem
realizadas. É o que se pode depreender do parágrafo final:
O
remédio (...) é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão,
removendo a tempo as suas causas das quais se prevê que possam gerar os
conflitos entre operários e patrões.
ITENS 25 E 26 à PROTEJA OS BENS
DA ALMA
Defende o respeito à dignidade do ser
humano
Inspira a criação do repouso semanal
remunerado do trabalhador
De
forma genérica, a encíclica demonstra o dever que cada um de nós devemos ter em
respeitar igualmente a todos os seres humanos, quando afirma:
A ninguém é lícito
violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande
reverência, nem lhe colocar impedimentos, para que ele atinja o aperfeiçoamento
ordenado a conquistar a vida eterna (...) pois estes são deveres para com Deus
que são absolutamente invioláveis.
No
item 26, defende a necessidade do “repouso festivo”, não só para o corpo mas
também para um repouso consagrado à religião.
A lição é bíblica
e nos vem do início das Sagradas Escrituras, quando Iahweh prescreveu ao homem
uma lei especial para esse repouso ao determinar: Lembra-te do dia do sábado
para santificá-lo. (Ex
20, 8)
Por
oportuno, nunca é demais lembrar que o livro do Êxodo, que contém esse sábio
conselho de Iahweh (nome hebraico do Deus bíblico do antigo Reino de Israel),
foi escrito entre os anos 1450 e 1410 a.C., sendo tradicionalmente atribuído a
Moisés a sua autoria.
Quase desnecessário dizer
que o Santo Padre LEÃO XIII deve ter se inspirado no conselho divino, com mais
de 3.000 anos, para enfatizar esse descanso. Com suas colocações doutrinárias,
impossível não se ver na Rerum Novarum a inspiração para o repouso
semanal remunerado do trabalhador! Hoje, isto já faz parte de todas as
legislações do Direito do Trabalho, no mundo inteiro.
ITEM 27 à PROTEÇÃO DO
TRABALHO DOS OPERÁRIOS,
DAS MULHERES E DAS CRIANÇAS
Necessidade de se limitar a jornada de
trabalho
Agora
parte para a defesa de uma limitação quanto ao tempo de trabalho, não indo além
do que as forças humanas o permitem.
Não é justo nem
humano exigir dos operários – homens, mulheres e crianças – tanto trabalho a
ponto de fazer, pelo excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o
corpo.
Naquela
época chegava-se ao absurdo de se exigir do trabalhador o inverso do que se
conquistou hoje, aplicando-se, então, um turno de 16 horas! Com apenas 8 horas
para descanso. Daí o Papa LEÃO XIII defender que o número de horas de trabalho
diário não pode exceder à força dos trabalhadores. Argumenta até para que haja
diferentes turnos de trabalho para diferentes atividades, dando como exemplo
aquele de extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais ocultos debaixo da
terra, que deve ter uma duração menor.
Vai até um pouco mais
adiante ao defender que se levem em consideração até as estações do ano, porque
não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria numa estação, é de
fato insuportável em outra.
ITEM 29 à O QUANTITATIVO DO
SALÁRIO DOS OPERÁRIOS
Ideia do salário-mínimo
A ideia defendida pela
encíclica é de que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a
subsistência do operário sóbrio e honrado. A encíclica enfatiza que trabalhar é
essencialmente o exercer uma atividade com o fim de suprir algumas necessidades
do ser humano, principalmente a sustentação da própria vida. E vai buscar sua
fundamentação lá no livro do Gênesis 3, 19, onde está a ordem: Comerás o teu pão com o suor do
teu rosto.
Mas impõe-se o pagamento de um salário justo, que o
patrão paga e não seria obrigado a mais nada. A não ser que negue o pagamento
ou o operário queira receber pelo que não fez, a justiça é lesada e, neste
caso, é que o Poder Público poderia intervir para fazer valer o direito; tanto
de um quanto do outro.
Complementa mostrando e recomendando que o patrão e
o operários podem fazer todas as negociações, mas não pode o primeiro
constranger o trabalhador a aceitar tarefa maior do que sua capacidade, como
acontece com o trabalho em condição análoga ao de escravo:
Façam, pois, o patrão e o operário todas as
convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do
salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais
elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para
assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido
pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras
que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas
pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma
violência contra a qual a justiça protesta.
ITEM 32 E 33 à AS ASSOCIAÇÕES
PARTICULARES E O ESTADO
Ideia da criação dos sindicatos
Justificando
a necessidade que todo ser humano tem de uma cooperação de outros seus
semelhantes, LEÃO XII foi buscar os ensinamentos da Sagrada Escritura:
Mais valem dois
juntos que um só, pois tiram vantagem da sua associação. Se um cai o outro
sustenta-o. Desgraçado do homem só, pois, quando cair não terá ninguém que o
levante. (Eclesiastes
4, 9-12)
E mais esta outra:
“O irmão que é ajudado pelo seu irmão, é como uma cidade forte. (Pr 18, 19)
Foi dessa propensão natural que
nasceu, primeiro, a sociedade civil. Ao depois, surgiram outras sociedades que,
por serem restritas e imperfeitas, mesmo assim, não deixam de ser sociedades
verdadeiras.
Defende
então a existência de leis que permitam associações que partem da natural
sociabilidade do ser humano. Para tanto e no final ele invoca São TOMÁS DE
AQUINO, na Summa Theologica, quando afirma:
Uma
lei não merece obediência, senão enquanto é conforme a reta razão e a lei
eterna de Deus. (Sum. Teol.,
I-II, q. 93, a. 3 ad 2)
Finaliza esses tópicos
ressaltando que as confrarias, as congregações, bem como as ordens religiosas
de todo gênero nascidas da autoridade da Igreja, para fins honestos contra as
quais os poderes públicos não podem arrogar-se de qualquer direito sobre elas.
Tal colocação bem nos levam a concluir e constatar que o Papa LEÃO XIII já
defendia o direito dos operários a se organizarem em associações (hoje
sindicatos), sem que o Estado nelas pudessem interferir.
Foi
deste item 33 que se fez a observação do início deste artigo sobre a defesa do Papa
LEÃO XIII para a criação de associações/sindicatos de operários e que teria
DURKHEIM a escrever o prefácio da 2ª edição da sua Divisão do Trabalho Social.
Inclusive com a afirmação leonina de que o Estado ali não pode intervir:
Os poderes
públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas,
atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las,
protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las.
ITENS 34 A 36 à AS ASSOCIAÇÕES
CATÓLICAS
A ideia da criação de uma previdência
privada
Esta deve ter inspirado a criação da
previdência social pública
Embora
nestes itens o foco seja trabalhar um tema mais da religião, qual seja que os
operários possam também se reunir em associações católicas, guiando-se pelo
culto de Deus, inculcando-se neles o espírito de piedade, tornando-se
principalmente fiel à observância dos domingos e dias de festa, verifica-se que
a encíclica se preocupava com que, ali então, nas associações de operários,
houvesse um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos
acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à
doença, à velhice e os reveses da fortuna.
Pode-se
então dizer que um tal pensamento possa ter inspirado, posteriormente, a
criação do que hoje conhecemos como FGTS = fundo de garantia pelo tempo de
serviço. Inspira também a criação da previdência social.
CONCLUSÕES:
Verifica-se também que a encíclica leonina
como que “chamou o feito à ordem”, exigindo a intervenção e um posicionamento
do Estado frente ao absurdo descaso com que os operários eram tratados e
humilhados.
Em consequência, depois dela passamos a
ter o Estado efetivamente intervencionista na vida econômico-social da
sociedade política. Passamos a ter também o nascedouro da legislação social,
especialmente do Direito do Trabalho, como aqui demonstrado.
Verifica-se também que os pontos fortes ou
os princípios aqui defendidos foram parar na legislação trabalhista e na
legislação social, em todo o mundo. Seriam eles:
(1) a importância
do trabalho para prover as necessidades da vida;
(2) o respeito à
dignidade do trabalhador;
(3) a proibição do
trabalho escravo ou equiparado ao de escravo;
(4) o pagamento do
salário justo;
(5) o limite da
jornada de trabalho;
(6) o salário ser
suficiente para assegurar a subsistência do trabalhador;
(7) o direito do
trabalhador se reunir em sindicatos;
(8) a previdência
social do trabalhador, inclusive o hoje FGTS;
(9) sem descurar o papel das leis de amparo ao
operário, segundo a lição tomista do que uma lei não merece obediência,
senão enquanto é conforme a reta razão e a lei eterna de Deus.
A respeito da encíclica leonina, assim
escreveu
Repete-se aqui o que, no início deste
artigo, observou BRUNNA RAFAELI LOFITE CASTRO (2010), quando chama a atenção
para um ponto muito importante, que ressaltamos neste texto: é o fato de que o
Papa LEÃO XIII, numa época em que o Estado pouco ou nada se preocupava com o
que estava acontecendo na questão operária, teve a coragem de, na sua Rerum
Novarum, determinar que deveria haver uma intervenção estatal nas relações
do trabalho. Deveria ele sair de sua posição cômoda, descruzar os braços e não
ficar apenas olhando toda espoliação do trabalhador e todo desrespeito com a
dignidade do ser humano por parte dos ricos e poderosos.
Podemos então afirmar que tal determinação
serviu também para provocar o nascimento do chamado Estado Intervencionista.
Preferentemente democrático e de direito.
São essas as considerações que se pode
fazer para demonstrar que, antes mesmo que doutrinadores do Direito abordassem
o tema e que, por óbvio, sequer existisse o Direito do Trabalho, o Papa LEÃO
XIII já tinha tido todas as ideias que conduziram depois à positivação dos
direitos sociais.
AGC – 20241020+20241101
FONTES BIBLIOGRÁFICAS E REFERÊNCIAS CONSULTADAS:
BIBLIA DE JERUSALÉM.
7ª reimpressão. SP: Paulus, 2011.
CASTRO, Brunna
Rafaeli Lofite. A Evolução Histórica do Direito do Trabalho no Mundo e no
Brasil. Artigo publicado em 2010, no sítio do JusBrasil. Baixado em
16/08/2024, no endereço:
CHARDIN,
Pierre Teilhard (1881-1955) O Fenômeno Humano. São Paulo: Ed. Herder,
1970.
DURKHEIM, Émile. (1858-1917) De la
Division del Trabajo Social. Buenos Aires: Shapire Editor, 1967.
LEÃO
XIII, Papa (Vincenzo Gioacchino Pecci, 1810-1903).
Encíclica Rerum Novarum, 1891. 17ª edição. São Paulo:
Paulinas, 2009.
Pode-se
baixar esta encíclica do endereço:
PIO
XI, Papa (Ambroglio Damianno Achille Ratti; 1857-1939). Encíclica Quadragesimo
Anno, 1931. Campinas, SP: Livre, 2022.
JOÃO
XXIII, Papa (Angelo Giuseeppe Roncali, 1891-1963). Encíclica Mater et
Magistra, 1961. 7ª edição. São Paulo: Paulinas, 1980.
WELLS, H. G. História Universal,
vol. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
APENDICE
DOCUMENTOS
DA DSI
A
relevância e a importância da encíclica leonina, que chamou o Estado à
responsabilidade sobre a questão social, repercutiu de uma tal maneira que até
hoje é lembrada com novas Encíclicas e documentos papais.
A
seguir e para quem interessar possa, apresentamos a sequência de todas as
encíclicas e demais documentos que, começando pela RN, fixaram a DSI, em
caráter definitivo:
1891 à Papa Leão XIII (Vincenzo Gioacchino Pecci,
1810-1903). Encíclica Rerum Novarum (A questão social)
1931 à Papa PIO XI – (Ambrogio Damiano
Achille Ratti, 1857-1939) Encíclica Quadragesimo Anno (A
restauração e o aperfeiçoamento da ordem social).
1941 à Papa PIO XII (Eugenio Maria
Giuseppe Giovanni Pacelli, 1876-1958). Radiomensagem Urbi et Orbi do
dia de Pentecostes, em 01/06/1941.
1961 à Papa SÃO JOÃO XXIII (Ângelo José Roncalli, 1881-1963) – Encíclica Mater
et Magistra (A recente evolução da questão social).
1963 à Papa SÃO JOÃO (Ângelo José
Roncalli, 1881-1963) – Encíclica Pacem in Terris (A paz na
terra).
1965 à Concílio Vaticano II –
Constituição Pastoral Gaudium et Spes (A Igreja no mundo de
hoje).
1967 à Papa SÃO PAULO VI (Giovanni
Battista Enrico Antonio Maria Montini,
1897-1978)
– Encíclica Populorum Progressio (Sobre o desenvolvimento dos
povos).
1971 à Papa SÃO PAULO VI (Giovanni
Battista Enrico Antonio Maria Montini, 1897-1978) – Encíclica Octogesima
Adveniens (Karol
Józef Wojtyła, 1920-2005) (Sobre as necessidades de um mundo em
transformação).
1971 à Sínodo dos Bispos – Documento A
Justiça no Mundo.
1981 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef
Wojtyła, 1920-2005) – (Karol
Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Laborem Exercens (O
trabalho humano).
1987 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef
Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Solicitudo Rei Socialis
(Solicitude social da Igreja).
1991 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) –
Encíclica Centesimus Anno (No centenário da Rerum Novarum).
1995 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) –
Encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida).
2001 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Novo Millenium Ineunte
(No início do novo milênio).
2009 à Papa BENTO XVI (Joseph Aloisius
Ratzinger, 1927-2022) – Encíclica Caritas in Veritate (A
Caridade na Verdade).
2015 à Papa FRANCISCO (Jorge Maria Bergoglio, 1936-2025) – Encíclica Laudato
Si (Sobre o cuidado da nossa Casa Comum: mudança climática e ecologia).
2016 à Papa FRANCISCO (Jorge Maria
Bergoglio, 1936-2025) – Exortação Apostólica Amoris Laetitia (A
Alegria do Amor) – Sobre o amor na Família.
2020 à Papa FRANCISCO (Jorge Maria Bergoglio, 1936-2025) – Encíclica
Fratelli Tutti (Todos Irmãos) – Sobre a Fraternidade e a
Amizade Social.
è PS: todos esses
documentos podem ser baixados gratuitamente do sítio da Santa Sé, no Vaticano: https://www.vatican.va
è Ou digitando o
nome do documento no Google. Ele busca o documento diretamente do sítio do
Vaticano.
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