domingo, 13 de julho de 2025

 

A ENCÍCLICA Rerum Novarum E O DIREITO DO TRABALHO

ADILSON GURGEL, advogado

 

INTRODUÇÃO

Muito se fala sobre as conquistas do trabalhador.

Muito se fala sobre as conquistas do Direito do Trabalho e dos Direitos Sociais.

Pouco se fala que essas conquistas e esses ramos do Direito são muito recentes e quase nada se fala do seu nascedouro.

Pouco se fala da importância de uma certa encíclica do Papa LEÃO XIII, promulgada no final do Século XIX. Mas ela tem tudo a ver com o Direito do Trabalho. Muito mais do que diversos doutrinadores jus laboristas.

Por isto, vamos mostrar aqui que existe um grande relação entre a encíclica Rerum Novarum – RN e o nascedouro das legislações que impulsionaram a criação deste novo ramo do Direito.

Mas, vamos começar com um fato real, vivenciado pelo autor: certa feita, uma amiga solicitou a leitura de sua dissertação de mestrado. Ao verificar que dizia respeito ao Direito do Trabalho, ponderou-se que este autor lida um pouco mais sobre tributos e o Direito Tributário. Mas, ela insistiu: queria a visão de um acadêmico “fora da bolha”.

 Pela leitura, verificou-se que as pugnadas conquistas do trabalhador ali defendidas deixavam a desejar. Indagou-se se ela já havia lido a encíclica Rerum Novarum, de 1891 – a qual, procurou-se mostrar, possuía princípios muito mais avançados do que as teses doutrinárias expostas na dissertação.

Como ela não havia lido – inclusive e por óbvio, não constava da sua biografia – entregou-se um exemplar do documento. Após a leitura, ela disse que havia mudado quase que radicalmente a sua dissertação, tão impactada que ficou com a leitura da encíclica.

 

A SITUAÇÃO DOS OPERÁRIOS NO SÉCULO XIX

Total desrespeito à dignidade do ser humano

Inicialmente, vamos dar uma panorâmica de como estava a questão social, que motivou a promulgação da encíclica leonina.

Com efeito. É por demais sabida a situação de penúria dos operários e de desrespeito à dignidade do ser humano, que prevalecia no Século XIX, em especial após a Revolução Industrial e o nascimento do Capitalismo, com o consequente acúmulo de riquezas: poucos com muito para viver e muitos com muito pouco para sobreviver.

O historiador H. G. WELLS, na sua História Universal, descreve bem o que ocorria:

À medida que a revolução Industrial progrediu, um grande fosso se foi cavando entre empregador e empregado. (1968:vol. 3º, p. 103),

Para se ter uma ideia do quanto o ser humano era espezinhado, ressalte-se que somente em 1819, na Inglaterra, foi promulgada a primeira Lei das Fábricas (Factory Act), tentando diminuir a bestialidade dos empregadores contra seus empregados.

Parece incrível que fosse jamais necessário proteger criancinhas de nove anos (!) contra o trabalho em fábricas, ou limitar o dia nominal de trabalho desses empregados a doze horas!

A lei industrial inglesa, de 1819, fraca e débil como nos parece hoje, foi a Carta Magna da infância; começou daí a proteção das crianças dos pobres, primeiro contra o trabalho excessivo e depois contra a fome e a ignorância. (WELLS, 1968:vol. 3, p. 284-285).

Tentativas foram feitas para conter essas ganâncias desumanas, baseadas nas ideias socialistas advindas dos ensinamentos de BUDA, de LAO TSE e, mais claramente, de JESUS CRISTO. E, como se mostrou na introdução deste trabalho, tivemos as ideias materialistas de MARX, de ENGELS e, posteriormente, de LENIN.

No entanto, a situação só tendia a piorar a cada dia.

Tendo presente essa visão, o Santo Padre LEÃO XIII, resolveu enfrentar a questão social e fez promulgar sua carta encíclica RERUN NOVARUM (RN), em 15 de maio de 1891. Pode-se dizer: trata-se de um documento revolucionário, pois a Igreja se preocupava mais com sua missão de divulgar o Evangelho. E eis que surge uma forte instituição em prol da dignidade do ser humano, em especial da classe operária. Daí sua encíclica chamar a se vivenciar Coisas Novas, com o subtítulo de “Sobre a condição dos operários”.

 

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA – DSI

Que o ser humano seja construtor responsável pela sociedade terrena

Antes de adentrarmos especificamente na Rerum Novarum e, depois, sua influência sobre o Direito do Trabalho, é interessante mostrar o que vem a ser a DSI – Doutrina Social da Igreja.

Inicialmente: como podemos definir o que vem a ser a DSI?

Fomos buscar um conceito que foi dado pelo Papa SÃO JOÃO PAULO II, na sua encíclica Solicitudo Rei Socialis – SRS (Solicitude Social), quando mostra que, a partir do valiosíssimo subsídio de LEÃO XIII e enriquecido por sucessivos documentos magisteriais, temos que a DSI se constituiu já:

Um corpo doutrinal atualizado, que se articula à medida que a Igreja, dispondo da plenitude da Palavra de Deus revelada por Jesus Cristo e com a assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14, 16-26 e 16, 13-15) vai lendo os acontecimentos, enquanto eles se desenrolam no decurso da História.

Deste modo, ela procura guiar os homens para corresponderem, com o auxílio também da reflexão racional e das ciências humanas, à sua vocação de construtores responsáveis pela sociedade terrena. (SRS 1)

Ao que pedimos vênia para acrescentar: e colocando sua opinião em prol da dignidade de todos os seres humanos.

Assim é que, no mundo jurídico, muito se elogia o surgimento e o desenvolvimento do Direito do Trabalho, como instrumento de proteção e garantia dos direitos dos próprios trabalhadores. Muito se elogia pensamentos e doutrinas trazidos por pensadores do Direito, da Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica, das demais Ciências Sociais e até de quem nunca fez coisa alguma por esse importante ramo do Direito.

Entretanto, parece que se desconhece um dos nascedouros desse importante e relevante ramo do Direito e de tantas outras conquistas sociais, o que veio com o advento da Doutrina Social da Igreja. Nascimento esse que se deu com a promulgação da encíclica Rerum Novarum (RN), do Papa LEÃO XIII, publicada no dia 15 de maio de 1891. Portanto, no final do Século XIX.

Lembrando que as encíclicas são cartas escritas e promulgadas pelo Papa, sendo destinadas não só aos fiéis católicos, mas também a todas as “pessoas de boa vontade”. Normalmente elas abordam problemas sociais do mundo contemporâneo e também questões de fé e de moral. Como um bom exemplo desta última abordagem, temos a encíclica Fides et RatioFR (1998), do Papa SÃO JOÃO PAULO II. Ele, com amparo principalmente nos ensinamentos do jesuíta Padre PIERRE TEILHARD DE CHARDIN (no seu livro O Fenômeno Humano) e na sabedoria teológica do então Cardeal JOSEPH RATZINGER (depois Papa BENTO XVI) abordou o delicado tema da conexão ou da ligação entre Fé e Razão.

É válido lembrar também que, como ÉMILE DURKHEIM (sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo, além de profundo estudioso das questões sociais e considerado o pai da Sociologia) – talvez em virtude de ter lido o documento leonino (e isto é uma mera conjectura deste autor), observando que havia uma lacuna na sua tese de doutorado, redigiu um prefácio à 2ª edição do seu livro De la Division du Travail Social (1893). Prefácio esse (intitulado por DURKHEIM de Algunas indicaciones sobre los grupos professionales) que quase se tornou mais importante do que o livro em si. Na realidade, o fato é que essa lacuna, na sua tese, era não ter mencionado a importância das associações profissionais. Com isso, DURKHEIM escreveu esse prefácio ressaltando a importância dos sindicatos, imaginando-os, inclusive, como elo de ligação entre o povo e o governo.

Como tanto o livro (que é de 1893) e o prefácio à 2ª edição (intitulado “Algumas indicações sobre os grupos profissionais”, cerca de 1900), é presumível que isto ele provavelmente hauriu do item 33, da RN, onde literalmente o Papa LEÃO XIII, ao defender a criação de associações de operários (hoje, sindicatos de trabalhadores), afirma que:

Os poderes públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas, atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las, protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las.

Observe-se e compare-se com o que diz DURKHEIM, no referido prefácio sobre a regulamentação dos sindicatos pelo Estado (aqui transcrito da edição em espanhol, mas lembrando que já existe edição em português):

Pero esta acción, si es necessaria, no debe degenerar em uma subordinación estrecha, como ocurió em los siglos XVII e XVIII. Los dos órganos em relación deben permanecer distintos: cada um de ellos tiene sus funciones que sólo él puede cumprir. (1967:25)

Em reforço a esse posicionamento, o Papa PIO XI, em 1931, ao comemorar os 40 anos da RN, agora na sua encíclica QUADRAGESIMO ANNO (QO), mas citado pelo Papa SÃO JOÃO XXIII, no item 21, da encíclica MATER ET MAGISTRA (MM), de 1961, estabelece que:

Aos trabalhadores, afirma ainda a Encíclica (RN), reconhece-se o direito natural de constituírem associações ... e ainda o direito de agirem, no interior delas, de modo autônomo e por própria iniciativa, para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses.

A contribuição da RN para a criação de sindicatos livres e independentes é uma pequena amostra do como a DSI ajudou a construir os direitos sociais dos trabalhadores em todo mundo democrático.

Antes de continuar, enumera-se os princípios basilares, que fomentam até hoje a DSI, mostrando como toda ela objetiva a proteção dos operários e a dignidade do ser humano.

Este resumo foi em parte inspirado no que fez o Papa SÃO JOÃO XXIII, na sua encíclica Mater et Magistra (MM). Esses princípios dizem respeito:

1)      Ao trabalho que não pode ser considerado como mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Como que para quase todos o trabalho é o único meio de subsistência, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do mercado. Sim, ela deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da equidade.

 

2)      À propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é considerada como um direito natural que o Estado não pode suprimir. Mas, chama a atenção para o fato de que ela, intrinsecamente, comporta uma função social, sendo igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos outros.

 

3)      Ao Estado, considerando que ele tem sua razão de ser na realização do bem comum na ordem temporal. Por isto, ele tem que intervir na ordem econômica, com o objetivo de promover a produção suficiente de bens materiais, cujo uso é necessário para o exercício da virtude. O Estado tem também a missão de proteger o direito de todos os cidadãos, em especial os mais fragilizados (MM, item 19).

 

4)      Ao Estado, instando a que vele pelas relações do trabalho para que elas sejam reguladas segundo a justiça e a equidade, com o indispensável respeito à dignidade da pessoa humana. Com isso e com outros tópicos, a encíclica leonina indicou linhas que inspiraram a legislação social dos Estados contemporâneos. Tais linhas foram de tanta importância, que o Papa PIO XI já chamava atenção, na sua encíclica Quadragesimo Annoque eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho". (MM, item 20)

 

5)      Aos trabalhadores é reconhecido o direito natural de constituir e reunir-se em associações, para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses econômico-profissionais. Torna-se imperativo demonstrar que aqui está a origem dos modernos sindicatos. (MM, item 21)

 

6)      Aos operários e empresários é imperativo que regulamentem as relações mútuas, inspirando-se no princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã. E desde lá a DSI afirma que tanto a concorrência de tipo liberal como a luta de classes no sentido marxista são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida. (MM, item 22)

Passemos agora a novas considerações, especificamente sobre a RN, em reforço do que ora se argumenta. Obviamente sujeito à apreciação dos doutos.

 

A ENCÍCLICA RERUM NOVARUM – 1891

O início da DSI

Críticas à questão operária

A encíclica Rerum Novarum distingue-se das demais por ter dado a todo o gênero humano regras seguríssimas para a boa solução do espinhoso problema do consórcio humano, a chamada “questão social”, precisamente quando isso era mais oportuno e necessário. (Papa PIO XI, logo no início da sua encíclica Quadragesimo Anno, de 1931)  

A RN é tida como o documento que iniciou a DSI – Doutrina Social da Igreja.

PARÊNTESIS: o leitor que não possuir a Rerum Novarum, pode baixá-la direto do sítio do Vaticano, no endereço: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html

Como aqui veremos, ela ataca as injustiças e desigualdades provocadas pela Revolução Industrial, do Século XIX, criticando também as soluções teóricas apontadas pelo socialismo e pela luta de classes. A encíclica leonina defende firmemente os direitos dos trabalhadores, mostrando a dignidade do trabalho e da pessoa humana. Também defende o direito à propriedade privada, exaltando seu uso social. Por último, como demonstrado, semeou a ideia dos atuais sindicatos de trabalhadores, ao defender a formação de associações profissionais.

Não resta dúvidas de que esta encíclica é a mais popular e a mais debatida, por mais de um século, em especial por tratar da chamada “questão social”. Alguns chegam a afirmar que a Rerum Novarum foi para a ação social cristã, o que foi o manifesto dos Comunistas (1848) ou o Capital, de MARX, para a ação socialista. Mas, é o documento mais importante para as conquistas sociais do ser humano. Sem dúvida.

Corroborando um tal pensamento, na encíclica Mater et Magistra (1961), o Papa São JOÃO XXIII, assim se manifestou sobre a “imortal encíclica Rerum Novarum, que completava 70 anos”:

7. Poucas vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela profundeza e vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da expressão. A linha de rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se de tanta importância, que não poderão jamais cair no esquecimento. Foi aberto um caminho novo para a Igreja. O Pastor supremo, fazendo próprios os sofrimentos, as queixas e as aspirações dos humildes e dos oprimidos, uma vez mais se ergueu como defensor dos seus direitos. (MM, item 7)

Se não, vejamos a grande influência social e humanitária advinda do que diz essa encíclica com mais de 130 anos de existência e de formação de muitas conquistas sociais, nela inspirados.

 

A ENCÍCLICA RERUM NOVARUM E O DIREITO DO TRABALHO

Um documento à frente do seu tempo

Pelas citações acima, verifica-se que o documento estava bem à frente do seu tempo! Ou que chegou na hora certa.

Verifica-se também que a encíclica leonina como que “chamou o feito à ordem”, exigindo um posicionamento do Estado frente ao descaso com que os operários eram tratados e humilhados. Depois dela passamos a ter o Estado efetivamente intervencionista na vida econômico-social da sociedade política.

Ao final, nas conclusões, faz-se um resumo dos pontos fortes ou os princípios aqui defendidos e que foram parar na legislação trabalhista e na legislação social.

Mas, ainda nesta introdução, transcreve-se, a respeito da encíclica leonina, o que escreveu BRUNNA RAFAELI LOFITE CASTRO (2010), depois de mostrar que a Rerum Novarum é um documento que deu início à terceira fase do Direito do Trabalho, chamada de “fase de consolidação”: 

Essa Encíclica destaca a necessidade de uma nova postura das classes dirigentes perante a chamada “Questão Social”, que trazia em seu texto as obrigações de patrões e empregados, fixando o salário-mínimo, a jornada máxima, enfatizando o respeito e a dignidade da classe trabalhadora, tanto espiritual quanto fisicamente. Por outro lado, o operário deveria cumprir fielmente o que havia contratado, nunca usar de violência nas suas reivindicações, ou usar de meios artificiosos para o alcance de seus objetivos. Neste momento, busca-se também uma intervenção estatal nas relações de trabalho.

Verifique-se que a autora chama a atenção para um ponto importante, que ressaltamos neste texto, é o fato de que o Papa LEÃO XIII, na sua Rerum Novarum, ter tido a coragem de determinar que deveria haver uma intervenção estatal nas relações de trabalho. E não ficar apenas olhando toda espoliação do trabalhador e todo desrespeito com a dignidade do ser humano por parte dos ricos e poderosos. Podemos então afirmar que tal determinação serviu também para provocar o nascimento do chamado Estado Intervencionista. Preferentemente democrático e de direito.

Com a anotação específica dos itens da RN que interessam ao presente estudo, vamos comentar os avanços sociais obtidos com a promulgação da mais que centenária encíclica:

 

ITEM 22 à OBRIGAÇÕES E LIMITES DA INTERVENÇÃO DO ESTADO

Provocou a mudança do Estado do Laissez Faire para o Estado Intervencionista

Sugeriu a criação da previdência social pública

Invoca a autoridade da lei, pois este item mostra que em todos os casos de excessos contra os mais fracos, bem como nos atentados contra a saúde, em virtude do trabalho em excesso, desproporcional à idade e sexo dos operários,

à é absolutamente necessário aplicar com certo limite a força e autoridade das leis.

Ao final, lembra: já que a classe rica faz da sua riqueza uma fortaleza e precisa menos de proteção pública, ressalta algo essencial para os menos afortunados, ao dispor que:

à  o Estado se faça pois, sob um particularíssimo título, a previdência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.

Estava aberto, assim, o caminho para as ideias e ideais sociais de uma maior proteção ao trabalhador, em especial na aposentadoria e na velhice, com os benefícios da previdência social pública.

Este item da RN, foi posteriormente reforçado, 70 anos depois, pela encíclica Mater et Magistra (de 1961). O Papa SÃO JOÃO XXIII nela afirma que compete ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a justiça e a equidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja lesada, nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana.

Ele também relembra que, a este propósito, a encíclica leonina aponta as linhas que vieram a inspirar a legislação social dos estados contemporâneos: linhas, como já observava o Papa PIO XI na encíclica Quadragesimo Anno, que eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho".

 

ITEM 23 à O ESTADO DEVE PROTEGER A PROPRIEDADE PARTICULAR

Para que se faça o bom uso da mesma e para garanti-la ao operário

Tal como já havia chamado a atenção no item 5, a encíclica RN volta a ressaltar que é dever principalíssimo dos governos assegurar a propriedade particular por meio de leis sábias. Com isso protege-se aquela parte dos operários que desejem melhorar de condição, mas utilizando-se de meios honestos, sem utilizar a violência e sem prejudicar a ninguém.

A crítica é feita aos que pretendem invadir direitos alheios sob pretexto de não sei que igualdade.

A encíclica dá um especial ênfase a essa proteção da propriedade particular não como abençoando os muito ricos que fazem mal uso de suas posses, mas lembrando de forma especial do pobre operário que trabalha e sonha com uma “vida melhor” para ele e para os seus. Como dito: utilizando-se de meios honestos, sem utilizar a violência e sem prejudicar a ninguém.

 

ITEM 24 à IMPEÇA AS GREVES

O Estado deve fazê-lo ao prover os meios de solução pacífica dos conflitos

A crítica que a encíclica faz a esta desordem grave e frequente, pode parecer estranho aos olhos de alguns. Mas fato é que que essa observação foi feita porque havia uma grande convulsão popular à época – Século XIX – em virtude de os operários serem muito explorados pelos donos do capital. E a greve era (como ainda é) uma forma de chamar a atenção para problemas graves e frequentes.

Pela leitura atenta deste item, verifica-se que a intenção leonina é buscar a forma correta de impedir as greves, tomando as medidas necessárias para elas sejam evitadas pela falta de motivos ou mesmo suprindo os motivos para elas serem realizadas. É o que se pode depreender do parágrafo final:

O remédio (...) é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as suas causas das quais se prevê que possam gerar os conflitos entre operários e patrões.

 

ITENS 25 E 26 à PROTEJA OS BENS DA ALMA

Defende o respeito à dignidade do ser humano

Inspira a criação do repouso semanal remunerado do trabalhador

De forma genérica, a encíclica demonstra o dever que cada um de nós devemos ter em respeitar igualmente a todos os seres humanos, quando afirma:

A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, nem lhe colocar impedimentos, para que ele atinja o aperfeiçoamento ordenado a conquistar a vida eterna (...) pois estes são deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis.

No item 26, defende a necessidade do “repouso festivo”, não só para o corpo mas também para um repouso consagrado à religião.

A lição é bíblica e nos vem do início das Sagradas Escrituras, quando Iahweh prescreveu ao homem uma lei especial para esse repouso ao determinar: Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo. (Ex 20, 8)

Por oportuno, nunca é demais lembrar que o livro do Êxodo, que contém esse sábio conselho de Iahweh (nome hebraico do Deus bíblico do antigo Reino de Israel), foi escrito entre os anos 1450 e 1410 a.C., sendo tradicionalmente atribuído a Moisés a sua autoria.

Quase desnecessário dizer que o Santo Padre LEÃO XIII deve ter se inspirado no conselho divino, com mais de 3.000 anos, para enfatizar esse descanso. Com suas colocações doutrinárias, impossível não se ver na Rerum Novarum a inspiração para o repouso semanal remunerado do trabalhador! Hoje, isto já faz parte de todas as legislações do Direito do Trabalho, no mundo inteiro.

 

ITEM 27 à PROTEÇÃO DO TRABALHO DOS OPERÁRIOS,

DAS MULHERES E DAS CRIANÇAS

Necessidade de se limitar a jornada de trabalho

Agora parte para a defesa de uma limitação quanto ao tempo de trabalho, não indo além do que as forças humanas o permitem.

Não é justo nem humano exigir dos operários – homens, mulheres e crianças – tanto trabalho a ponto de fazer, pelo excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo.

Naquela época chegava-se ao absurdo de se exigir do trabalhador o inverso do que se conquistou hoje, aplicando-se, então, um turno de 16 horas! Com apenas 8 horas para descanso. Daí o Papa LEÃO XIII defender que o número de horas de trabalho diário não pode exceder à força dos trabalhadores. Argumenta até para que haja diferentes turnos de trabalho para diferentes atividades, dando como exemplo aquele de extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais ocultos debaixo da terra, que deve ter uma duração menor.

Vai até um pouco mais adiante ao defender que se levem em consideração até as estações do ano, porque não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria numa estação, é de fato insuportável em outra.

 

ITEM 29 à O QUANTITATIVO DO SALÁRIO DOS OPERÁRIOS

Ideia do salário-mínimo

A ideia defendida pela encíclica é de que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. A encíclica enfatiza que trabalhar é essencialmente o exercer uma atividade com o fim de suprir algumas necessidades do ser humano, principalmente a sustentação da própria vida. E vai buscar sua fundamentação lá no livro do Gênesis 3, 19, onde está a ordem: Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.

Mas impõe-se o pagamento de um salário justo, que o patrão paga e não seria obrigado a mais nada. A não ser que negue o pagamento ou o operário queira receber pelo que não fez, a justiça é lesada e, neste caso, é que o Poder Público poderia intervir para fazer valer o direito; tanto de um quanto do outro.

Complementa mostrando e recomendando que o patrão e o operários podem fazer todas as negociações, mas não pode o primeiro constranger o trabalhador a aceitar tarefa maior do que sua capacidade, como acontece com o trabalho em condição análoga ao de escravo:

Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.

 

ITEM 32 E 33 à AS ASSOCIAÇÕES PARTICULARES E O ESTADO

Ideia da criação dos sindicatos

Justificando a necessidade que todo ser humano tem de uma cooperação de outros seus semelhantes, LEÃO XII foi buscar os ensinamentos da Sagrada Escritura:

Mais valem dois juntos que um só, pois tiram vantagem da sua associação. Se um cai o outro sustenta-o. Desgraçado do homem só, pois, quando cair não terá ninguém que o levante. (Eclesiastes 4, 9-12)

E mais esta outra: “O irmão que é ajudado pelo seu irmão, é como uma cidade forte. (Pr 18, 19)

Foi dessa propensão natural que nasceu, primeiro, a sociedade civil. Ao depois, surgiram outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas, mesmo assim, não deixam de ser sociedades verdadeiras.

Defende então a existência de leis que permitam associações que partem da natural sociabilidade do ser humano. Para tanto e no final ele invoca São TOMÁS DE AQUINO, na Summa Theologica, quando afirma:  

Uma lei não merece obediência, senão enquanto é conforme a reta razão e a lei eterna de Deus. (Sum. Teol., I-II, q. 93, a. 3 ad 2)

Finaliza esses tópicos ressaltando que as confrarias, as congregações, bem como as ordens religiosas de todo gênero nascidas da autoridade da Igreja, para fins honestos contra as quais os poderes públicos não podem arrogar-se de qualquer direito sobre elas. Tal colocação bem nos levam a concluir e constatar que o Papa LEÃO XIII já defendia o direito dos operários a se organizarem em associações (hoje sindicatos), sem que o Estado nelas pudessem interferir.

Foi deste item 33 que se fez a observação do início deste artigo sobre a defesa do Papa LEÃO XIII para a criação de associações/sindicatos de operários e que teria DURKHEIM a escrever o prefácio da 2ª edição da sua Divisão do Trabalho Social. Inclusive com a afirmação leonina de que o Estado ali não pode intervir:

Os poderes públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas, atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las, protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las.

 

ITENS 34 A 36 à AS ASSOCIAÇÕES CATÓLICAS

A ideia da criação de uma previdência privada

Esta deve ter inspirado a criação da previdência social pública

Embora nestes itens o foco seja trabalhar um tema mais da religião, qual seja que os operários possam também se reunir em associações católicas, guiando-se pelo culto de Deus, inculcando-se neles o espírito de piedade, tornando-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias de festa, verifica-se que a encíclica se preocupava com que, ali então, nas associações de operários, houvesse um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à velhice e os reveses da fortuna.

Pode-se então dizer que um tal pensamento possa ter inspirado, posteriormente, a criação do que hoje conhecemos como FGTS = fundo de garantia pelo tempo de serviço. Inspira também a criação da previdência social.

 

CONCLUSÕES:

Pelas citações acima, verifica-se que o documento estava bem à frente do seu tempo! Ou, mais precisamente, que a Rerum Novarum chegou na hora certa.

Verifica-se também que a encíclica leonina como que “chamou o feito à ordem”, exigindo a intervenção e um posicionamento do Estado frente ao absurdo descaso com que os operários eram tratados e humilhados.

Em consequência, depois dela passamos a ter o Estado efetivamente intervencionista na vida econômico-social da sociedade política. Passamos a ter também o nascedouro da legislação social, especialmente do Direito do Trabalho, como aqui demonstrado.

Verifica-se também que os pontos fortes ou os princípios aqui defendidos foram parar na legislação trabalhista e na legislação social, em todo o mundo. Seriam eles:

(1) a importância do trabalho para prover as necessidades da vida;

(2) o respeito à dignidade do trabalhador;

(3) a proibição do trabalho escravo ou equiparado ao de escravo;

(4) o pagamento do salário justo;

(5) o limite da jornada de trabalho;

(6) o salário ser suficiente para assegurar a subsistência do trabalhador;

(7) o direito do trabalhador se reunir em sindicatos;

(8) a previdência social do trabalhador, inclusive o hoje FGTS;

(9) sem descurar o papel das leis de amparo ao operário, segundo a lição tomista do que uma lei não merece obediência, senão enquanto é conforme a reta razão e a lei eterna de Deus.

A respeito da encíclica leonina, assim escreveu

Repete-se aqui o que, no início deste artigo, observou BRUNNA RAFAELI LOFITE CASTRO (2010), quando chama a atenção para um ponto muito importante, que ressaltamos neste texto: é o fato de que o Papa LEÃO XIII, numa época em que o Estado pouco ou nada se preocupava com o que estava acontecendo na questão operária, teve a coragem de, na sua Rerum Novarum, determinar que deveria haver uma intervenção estatal nas relações do trabalho. Deveria ele sair de sua posição cômoda, descruzar os braços e não ficar apenas olhando toda espoliação do trabalhador e todo desrespeito com a dignidade do ser humano por parte dos ricos e poderosos.

Podemos então afirmar que tal determinação serviu também para provocar o nascimento do chamado Estado Intervencionista. Preferentemente democrático e de direito.

São essas as considerações que se pode fazer para demonstrar que, antes mesmo que doutrinadores do Direito abordassem o tema e que, por óbvio, sequer existisse o Direito do Trabalho, o Papa LEÃO XIII já tinha tido todas as ideias que conduziram depois à positivação dos direitos sociais.

AGC – 20241020+20241101

 

 

 

 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS E REFERÊNCIAS CONSULTADAS:

 

BIBLIA DE JERUSALÉM. 7ª reimpressão. SP: Paulus, 2011.

 

CASTRO, Brunna Rafaeli Lofite. A Evolução Histórica do Direito do Trabalho no Mundo e no Brasil. Artigo publicado em 2010, no sítio do JusBrasil. Baixado em 16/08/2024, no endereço:

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-evolucao-historica-do-direito-do-trabalho-no-mundo-e--no-brasil/111925458

 

CHARDIN, Pierre Teilhard (1881-1955) O Fenômeno Humano. São Paulo: Ed. Herder, 1970.

 

DURKHEIM, Émile. (1858-1917) De la Division del Trabajo Social. Buenos Aires: Shapire Editor, 1967.

 

LEÃO XIII, Papa (Vincenzo Gioacchino Pecci, 1810-1903). Encíclica Rerum Novarum, 1891. 17ª edição. São Paulo: Paulinas, 2009.

Pode-se baixar esta encíclica do endereço:

https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-iii_enc_15051891_rerum-novarum.html

 

PIO XI, Papa (Ambroglio Damianno Achille Ratti; 1857-1939). Encíclica Quadragesimo Anno, 1931. Campinas, SP: Livre, 2022.

 

JOÃO XXIII, Papa (Angelo Giuseeppe Roncali, 1891-1963). Encíclica Mater et Magistra, 1961. 7ª edição. São Paulo: Paulinas, 1980.

 

WELLS, H. G. História Universal, vol. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

 

 

 

APENDICE

DOCUMENTOS DA DSI

A relevância e a importância da encíclica leonina, que chamou o Estado à responsabilidade sobre a questão social, repercutiu de uma tal maneira que até hoje é lembrada com novas Encíclicas e documentos papais.

A seguir e para quem interessar possa, apresentamos a sequência de todas as encíclicas e demais documentos que, começando pela RN, fixaram a DSI, em caráter definitivo:

1891 à Papa Leão XIII (Vincenzo Gioacchino Pecci, 1810-1903). Encíclica Rerum Novarum (A questão social)

1931 à Papa PIO XI – (Ambrogio Damiano Achille Ratti, 1857-1939) Encíclica Quadragesimo Anno (A restauração e o aperfeiçoamento da ordem social).

1941 à Papa PIO XII (Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, 1876-1958). Radiomensagem Urbi et Orbi do dia de Pentecostes, em 01/06/1941.

1961 à Papa SÃO JOÃO XXIII (Ângelo José Roncalli, 1881-1963) – Encíclica Mater et Magistra (A recente evolução da questão social).

1963 à Papa SÃO JOÃO (Ângelo José Roncalli, 1881-1963) – Encíclica Pacem in Terris (A paz na terra).

1965 à Concílio Vaticano II – Constituição Pastoral Gaudium et Spes (A Igreja no mundo de hoje).

1967 à Papa SÃO PAULO VI (Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, 1897-1978) – Encíclica Populorum Progressio (Sobre o desenvolvimento dos povos).

1971 à Papa SÃO PAULO VI (Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, 1897-1978) – Encíclica Octogesima Adveniens (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) (Sobre as necessidades de um mundo em transformação).

1971 à Sínodo dos Bispos – Documento A Justiça no Mundo.

1981 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Laborem Exercens (O trabalho humano).

1987 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Solicitudo Rei Socialis (Solicitude social da Igreja).

1991 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Centesimus Anno (No centenário da Rerum Novarum).

1995 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005) – Encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida).

2001 à Papa SÃO JOÃO PAULO II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005)  – Encíclica Novo Millenium Ineunte (No início do novo milênio).

2009 à Papa BENTO XVI (Joseph Aloisius Ratzinger, 1927-2022) – Encíclica Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade).

2015 à Papa FRANCISCO (Jorge Maria Bergoglio, 1936-2025) – Encíclica Laudato Si (Sobre o cuidado da nossa Casa Comum: mudança climática e ecologia).

2016 à Papa FRANCISCO (Jorge Maria Bergoglio, 1936-2025) – Exortação Apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor) – Sobre o amor na Família.

2020 à Papa FRANCISCO  (Jorge Maria Bergoglio, 1936-2025) – Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos) – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social.

 

è PS: todos esses documentos podem ser baixados gratuitamente do sítio da Santa Sé, no Vaticano: https://www.vatican.va

è Ou digitando o nome do documento no Google. Ele busca o documento diretamente do sítio do Vaticano.

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