terça-feira, 20 de setembro de 2022

 A virtude da gratuidade 

Padre João Medeiros Filho

 “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10, 8), recomendou Cristo a seus discípulos. O Mestre desaprova a exorbitância do interesse, utilitarismo e descarte. A gratuidade é uma virtude essencial. No entanto, muitos consideram-na atitude insólita. Reconhecer a sua importância, parece algo bizarro nos ambientes políticos, marcados pela lógica do “toma lá, dá cá”. Não faz tanto tempo, nossalões palacianos, consagrava-se o jargão: “é dando que se recebe”, deturpando inescrupulosa e maliciosamente as palavras da oração atribuída a São Francisco de Assis. A ausência dessa virtude desencadeia a espiral das desigualdades, impedindo o surgimento de um novo ciclo para a humanidade. Constata-se o distanciamento da sociedade atual das ações orientadas por esse atributo humano e cristão. Já se tornou lugar comum falar do crescente derramamento de notícias e narrativas falsas na mídia e nas redes sociais. São inverdades propagadas em larga escala para fragilizar e desmoralizar pessoas, incitar ódio e, assim, de modo pernicioso e imoral, gerar vantagens para os disseminadores e aqueles que levianamente os orientam. Passou-se a coroar:sua majestade, a sordidez. A gratuidade é determinante para desenvolver o altruísmo, que ilumina a alma e fecunda a inteligência. “Há mais felicidade em dar do que em receber”, proclamou Jesus, em Atos dos Apóstolos (At 20, 35). Apesar de ser uma qualidade fundamental, ela vai se afastando do mundo hodierno e do seu papel de estímulo no coração humano. Em certos meios sociais, chega-se ao extremo de se pensar que agir gratuitamente é sinônimo de ingenuidade ou parvoice. Equivocadamente, muitos consideram “virtude” o oposto: manipular tudo em troca de algum ganho pessoal ou conveniência. Essa perspectiva egoísta torna-se permissiva para a conquista de benesses. A escassez da gratuidade alimenta patologias, tornando as pessoas dominadas por forças sedutoras e hegemônicas, levando ao individualismo e à ganância. É impressionante o avanço do egocentrismo nos hábitos da civilização contemporânea. As relações são orientadas ou estabelecidas a partir de um jogo de interesses. Assim, determinados indivíduos e situações são reduzidos a instrumentos para obtenção do objetivo. Um exemplo: muitos filhos não conseguem cuidar mais dos pais idosos e fragilizados. Alguns alegam uma série de motivos e compromissos. No fundo, talvez não queiram perder tempo e ter preocupações. Carecem do sentido da gratidão e desprendimento. Vive-se no império do utilitarismo e do descartável. Gestos magnânimos são necessários entre amigos. Quantas vezes, entende-se por amizade, a possibilidade de se poder obter benefícios. Se ela é desprovida de solidariedade não conseguirá despertar alento e esperança, trazer luz e alegria ao viver de muitos. O mundo de hoje tenta sepultar a generosidade, ensinada por Cristo, com suas palavras e exemplos. O problema ecológico, que está se tornando cada vez mais grave, é fruto do descaso do homem pela mãe-natureza, que oferece tudo gratuitamente. Os resultados desse desrespeito são agressões a seres vivos e tudo que nos circunda. Dádiva do Criador, ela é indubitavelmente pródiga e espera-se apenas o reconhecimento da humanidade pela sua doação. A extração desordenada de minérios,focadano lucro e na idolatria do dinheiro, é deletéria. Tem-se verificado que esse tipo de empreendimento causa tragédias, cenários desoladores e mortes. É preciso reavivar e cultivar o sentimento da gratuidade. Sem ela, a humanidade aumentará a escalada de contrastes e indiferença, comprovando que não adianta alguns terem os bolsos cheios, enquanto a maioria vive na miséria. Esse quadro conduz ao fracasso do ser humano. Até a vivência religiosa sofre desvios, sendo marcada, por vezes, de um jogo quase comercial. Os fiéis esperam, em retorno à sua crença, favores e graças. Entretanto, Deus nos doa tudo, nada exigindo em troca. A gratuidade é importante na pauta das práticas necessárias para reconstruir a sociedade. O Evangelho apresenta elementos capazes de levar os seres humanos a redescobrir riquezas indispensáveis. Entre elas, está a valorização da generosidade, que é a expressão do amor do Onipotente pelos homens. É importante relembrar o ensinamento do apóstolo Paulo: “Que cada um dê sem medir. Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 6-7).

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