quarta-feira, 8 de junho de 2022

 A cegueira do ódio 

 Padre João Medeiros Filho 

Segundo a teologia cristã, o ódio (ou suas nuances: cólera, ira, raiva etc.) é um dos sete pilares – pecados capitais – de desajuste dos seres humanos, que os leva à cegueira espiritual. Segundo o relato dos evangelistas, Cristo curou vários cegos (com deficiência visual congênita ou adquirida). Tal situação é verificada na sociedade brasileira da atualidade. Há uma multidão de míopes e “não videntes” ao redor de nós. Faz-nos lembrar o romance de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira”, no qual descreve a “epidemia de ablepsia” numa cidade, que chega posteriormente à destruição. Pode ser lembrada também a obra do pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho: “De parabel der blinden” (A parábola dos cegos), guardada no Museu de Capodimonte, em Nápoles (Itália). O autor retrata a alegoria referida por Cristo: “Se um cego guia outro, ambos cairão no abismo” (Mt 15, 14). Nessa passagem de Mateus, Jesus analisa a postura de seus opositores. Fala-se que o amor é cego. Todavia, pesquisadores afirmam que ele provoca cegueira, quando utópico ou irreal. Por outro lado, o ódio em todas as suas manifestações acarreta ausência de visão interior. Curar-se da ira é deixar que as traves caiam de nossos olhos, recobrando a luz. Tempos de trevas densas envolvem nosso país, levando muitos à barbárie e à desumanização. Atravessam-se dias obnubilados com brumas intensas, provocando desencontros e colisões. Faz-se abertamente a apologia de narrativas falaciosas, parciais e de sofismas, agressões, intransigência, arrogância, polarização etc. Urge conclamar à lucidez aqueles que mergulham profundamente no lamaçal da cólera. Jesus estimulou os discípulos a respeitar o seu semelhante, apesar de tal atitude não pressupor obrigatoriamente afeto. No entanto, essa é a origem do amor cristão, embora não inclua ternura. Do ponto de vista científico, a raiva é uma doença perigosa em animais e no homem. A ira é uma patologia mental ou espiritual grave, tendendo a tornar-se endêmica no Brasil hodierno. Pode ser mais ofensiva e devastadora que muitos vírus disseminados. Os coléricos não se dão conta do dever de reconhecer no próximo sua individualidade e seus direitos como cidadão. Concebem um mundo unilateral, no qual o “eu” se torna medida absoluta do valor e desvalor. Isto desumaniza ou inferioriza. Retira-se a dignidade da pessoa e legitima-se ilícita e iniquamente um poder arbitrário de praticar injustiça e opressão. Aqueles que destroem física ou psiquicamente alguém, perderam o sentido de Deus, da vida digna e dimensão social. A ira irracionaliza e apequena as criaturas. Não será este o clima que paira atualmente no Brasil? Quem curará a nossa amada pátria de tal morbidade? No aludido romance do escritor português uma mulher (esposa de um médico) não foi atingida pela doença e orientava os deficientes visuais. Estamos diante de uma metáfora. Segundo os quatro evangelhos, Cristo libertou da escuridão muitos que não enxergavam biológica ou espiritualmente. O Filho de Deus não está mais fisicamente entre nós. No entanto, a sua doutrina permanece, podendo sarar e transformar. O Brasil contemporâneo carece de conhecimento e vivência da Palavra divina. Infelizmente, ela é instrumentalizada e usada de forma distorcida, até ideologizada, numa afronta tanto à semântica bíblica, quanto à hermenêutica sagrada. “Tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Acreditamos que a cegueira generalizada passe. Um dia, avistar-se-ão os escombros da destruição dos valores éticos da sociedade. Será necessário, como recorda o poema “O fim e o início”, da polonesa Wislawa Szymborska, que alguém faça a faxina, tire os entulhos das ruas e abra os caminhos para que as caçambas passem com o lixo moral. É preciso se imunizar do ódio. Os que têm alguma lucidez devem lutar para que no final dessa triste guerra ideológica, política e social haja quem se dê ao trabalho de um recomeço. Eduquem-se os brasileiros para o amor, que “é magnânimo, benfazejo, não é invejoso, presunçoso e colérico, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade... e jamais acabará”, como declara o Apóstolo Paulo (1Cor 13, 4-8). E assim proclama o evangelista João: “Deus é amor” (1Jo 4, 8)!

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