domingo, 2 de maio de 2021

 

“Meninos, eu vi”
Padre João Medeiros Filho
 
Confesso que o verso acima – pinçado do poema de Gonçalves Dias, exaltando os timbiras – emociona-me e cabe justamente no relato a seguir. Trata-se de um registro dos primórdios da Barragem de Oiticica, no município de Jucurutu (RN). Os verdadeiros protagonistas de uma história nem sempre são lembrados. Sói acontecer que outros recebam os louros da vitória. Em 1951, o Nordeste viveu uma de suas frequentes secas, com longa estiagem. À época, era bispo de Caicó Dom José de Medeiros Delgado. Nesse mesmo ano, foi designado arcebispo de São Luís (MA), assumindo aquela arquidiocese, em 04 de setembro. Conta-se que sua despedida do Seridó foi pranteada, repetindo-se tamanha comoção, tempos depois, no sepultamento de Monsenhor Walfredo Gurgel. Este, em 19 de setembro daquele ano, assumiu o segundo mandato de deputado federal. A Sé de Santana, em poucos dias, foi privada de seu bispo e do vigário geral. Representava Jucurutu na Assembleia Legislativa, Stoessel de Brito, proprietário da Fazenda Baixio. Na construção do Ginásio Diocesano Seridoense (em 1941), o bispo e o parlamentar tornaram-se grandes amigos. O deputado foi tocado pelo dinamismo, sensibilidade, espírito ecumênico e humanitário do prelado. Brotou neles uma sincera amizade, perdurando até a morte.
Diante da inclemência da seca e do sofrimento da população, a autoridade diocesana convocou uma reunião com as lideranças seridoenses a fim de amenizar as consequências do flagelo. Nos períodos de estiagem prolongada, o poder público costumava organizar frentes de trabalho para os agricultores, impedidos de cultivar a terra. A coordenação dessas ações ficava a cargo do Departamento Nacional de Obras contra as Secas – DNOCS. Por sugestão de Dom Delgado, o grupo decidiu por unanimidade propor ao governo federal um empreendimento duradouro e não mero paliativo. Optou-se por indicar a construção de uma barragem, perto de Barra de Santana, como reservatório de água potável, destinado também à pesca e irrigação. O antístite caicoense conhecia bem o Piranhas-Açu, pois, quando jovem, viveu perto das nascentes do referido rio.
Dom Delgado estava prestes a viajar ao Rio de Janeiro para tratar com o Núncio Apostólico de sua futura diocese (São Luís). Antes, passou pela Paraíba, onde se encontrou com José Américo de Almeida, seu amigo de longa data e coordenador nacional do Programa de Combate às Secas. O governador paraibano era sobrinho, pelo lado materno, de Monsenhor Walfredo Leal, ex-governador da Paraíba. Este tinha profunda estima pelo jovem pároco de Campina Grande, futuramente primeiro bispo de Caicó. Na capital da República, Dom Delgado aproveitou para falar com o vice-presidente Café Filho e pessoas influentes, inclusive seu compadre Tristão de Athayde. Disso resultou posteriormente o ato federal, autorizando o inicio da construção da Barragem de Oiticica. O engenheiro Clóvis Gonçalves dos Santos foi nomeado para dirigir as obras.
Em 1953, José Américo ocupou, pela segunda vez, o Ministério da Viação e Obras Públicas, ao qual era subordinado o DNOCS. Como novo titular da pasta, liberou mais recursos para a barragem. Aproveitou a infraestrutura da Igreja, solicitando das paróquias supervisionar a distribuição de gêneros alimentícios às famílias carentes. Estas eram exploradas pelos “barracões”, integrantes da “indústria das secas”. Conferiu às autoridades eclesiásticas a missão de ouvidores das vítimas da estiagem. José Américo era católico fervoroso, ex-seminarista, sobrinho pelo lado paterno de outro padre (Odilon Benvindo). Veio a ser indicado pelo Presidente Vargas embaixador do Brasil, junto ao Vaticano. Porém, declinou da honrosa nomeação. Era muito ligado a Alceu de Amoroso Lima, tendo-o escolhido para saudá-lo, quando da posse na Academia Brasileira de Letras.
Dom Delgado pensou também na assistência religiosa aos operários. Recomendou a Padre Deoclides de Brito Diniz que lhes dedicasse especial atenção e zelo pastoral. No canteiro de obras, o inesquecível sacerdote celebrou uma missa vespertina, a primeira, em solo seridoense. No final da cerimônia, leu uma mensagem profética de Dom Delgado: “O suor de tantos, aqui derramado, um dia converter-se-á em água abundante para matar a sede e fome de nosso povo.” Que nome oficial será escolhido para denominar merecidamente, em breve, a barragem? Setenta anos depois, a população usufruirá de seus benefícios. Convém lembrar as palavras de Cristo: “Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus.” (Mc 12, 17).

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