terça-feira, 8 de novembro de 2022

 

Um tico de história
​Hoje vou novamente de Supremo Tribunal Federal, persistindo num tema que abordei outro dia: o fato de ser o STF, ao mesmo tempo, corte constitucional e tribunal supremo.
Mesmo que haja uma razão histórica para essa conformação híbrida do STF – o seu modelo é a U.S. Supreme Court que, como a mais alta instância judicial estadunidense, detém múltiplas competências, entre elas a de fazer cumprir aquilo que está na Constituição do país –, a questão a ser respondida é: deveria o STF ser/tornar-se apenas uma Corte Constitucional, atribuindo-se as suas atuais competências de Corte Suprema (tipo a matéria penal e boa parte da sua carga recursal) para um outro Tribunal, provavelmente o Superior Tribunal de Justiça?
Vou agora registrar um tico da história das cortes constitucionais, para quem sabe possamos, progressivamente, tomar partido nesse dilema político-constitucional.
Para quem não sabe, uma Corte Constitucional é um órgão típico do denominado controle concentrado ou continental-europeu de constitucionalidade, que surge, segundo convencionado, na Áustria, em 1920, tendo por inspiração (mais como ponto de chegada do que de partida) o trabalho teórico do grande Hans Kelsen (1881-1973).
Como explica José Alfredo de Oliveira Baracho (no texto “As especificidades e os desafios democráticos do processo constitucional”, que consta do livro “Hermenêutica e jurisdição constitucional”, publicado pela Del Rey em 2001), com a inadaptação do modelo de controle americano/difuso à Europa, “após a Primeira Guerra Mundial surgiram novas experiências através das tentativas e reflexões sobre o controle de constitucionalidade decorrente das novas constituições. A iniciativa de maior repercussão surge com a Constituição da Áustria de 1º de outubro de 1920, dos artigos 137 a 148. Inspirada por Hans Kelsen criou-se uma Alta Corte Constitucional, cuja competência era o controle da constitucionalidade das leis. Essa experiência, assentada nas teses de Kelsen, não ficou isolada. A Checoslováquia, com a Constituição de 1920, adotou uma instituição comparável àquela que surgiu na Áustria. (...)”. E por aí vai.
A ideia de uma Corte Constitucional é, já afirmava Dominique Rousseau (em “La justice constitutionnelle en Europe”, Montchretien, 1998), um produto das grandes mudanças que o século passado trouxe na história e na política: “O século XIX foi o dos Parlamentos, o XX é o século da justiça constitucional, como costuma dizer o professor Mauro Cappelletti. É verdade: que o estabelecimento de uma corte constitucional é, depois de 1945, um elemento obrigatório em todas as constituições modernas com o mesmo status das assembleias parlamentares, de um governo e de um chefe de Estado; que os países que descobrem a democracia, Portugal em 1974, Espanha em 1975, a Polônia, Croácia, Eslovênia, Eslováquia, República Checa, Hungria, Bulgária, Romênia em 1990, apressam-se em inscrever, em suas novas constituições, o controle de constitucionalidade das leis; que os países hostis por tradição política a toda forma de controle jurisdicional das leis descobrem, como a França em 1958 e, sobretudo, em 1971, o ‘charme’ misterioso da esfinge que está afixada sobre a porta de entrada do Conselho Constitucional. E, na Europa, não resta mais que o Reino Unido, os Países Baixos e, em certa medida, os Estados Escandinavos a não terem sucumbido à justiça constitucional”.
No modelo europeu clássico, tem-se um tribunal específico (diferentemente do modelo americano/difuso), assim vocacionado, a tal Corte/Tribunal Constitucional, competente para apreciar, de modo concentrado, direto e em abstrato (às vezes, em concreto), a constitucionalidade das leis (entendida aqui em sentido lato, para abarcar outros atos normativos). E, segundo consta, essa sacada já foi ou é adotada, com maior ou menor variação na formatação, em países como: Brasil, Áustria, Itália, antiga Alemanha Ocidental, Alemanha Unificada, Chipre, Turquia, Peru, antiga Iugoslávia, antiga Tchecoslováquia, Portugal e Espanha.
Confesso que, para mim, o dilema ainda persiste: mesmo mantido concomitantemente controle difuso (não se quer nem se deve acabar com este, é crucial ficar claro), será que devemos pôr o nosso STF só cuidando (direta e indiretamente) de controle de constitucionalidade? Bom, quem sabe não chegamos a uma resposta com mais algumas histórias? Quem sabe?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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