quinta-feira, 24 de junho de 2021

 

A CIDADE DA MÚSICA

 

Diogenes da Cunha Lima

 

A música alimentava a infância de Nova Cruz. A vida diária tinha ritmo e melodia.

Para mim, eram quase músicas a chuva caindo na telha-vã ou pela biqueira, o som das grandes águas barrentas nas cheias do rio Curimataú, o rouco chocalho das vacas e o agudo tilintar dos chocalinhos das ovelhas.

Em nossa casa, o dia começava com meu pai cantando canções românticas. Também repetia uma canção de ninar do tempo da escravatura que embalara a sua mãe. Hoje, seria proibida por lei e pelos costumes: “Esta noite eu peguei um burro, / amarrei no pé do muro / e o bicho está lá. / Ei, mulata-tá-tá, mulata minha nega, mulata-tá-tá”. Eu quase chorava com pena do burrinho que passava a noite inteira amarrado.

O grande sino da matriz, que cheguei a tocar, comandava a comunidade. Seu badalar tinha várias motivações: a chamada para atos religiosos, a alegria das festas, até a tristeza dos finados.

Coroinha, cantávamos em latim o louvor medieval composto por São Tomás de Aquino: “Tantum Ergo”. Não sabíamos o sentido das palavras, mas caprichávamos na pronúncia. Ajudando o padre durante a celebração da missa, também em latim, acionávamos a campainha na hora da elevação.

A cidade alegrava-se com a banda regida pelo Tenente Freitas, tocando dobrados compostos em homenagem a personalidades locais. Muito cedo, ouvíamos as alvoradas. Olival, o filho, é o maestro sucessor na banda. Do grupo musical, participavam suas três bonitas filhas, moças exímias nos instrumentos de sopro.

Chiquito Trindade tocava violão e era líder do regional. O clarinete merecia tratamento especial. Era executado por Luís Tavares, alfaiate que morava na esquina da Rua do Fogo. Ou por “Papo”, assim chamado quando estava bêbado. Quando sóbrio, apresentava-se: “Sou André Ferreira da Silva, seu criado”.

A feira semanal tinha de tudo, com dimensão só comparável à Feira do Alecrim. A cantiga de violeiros harmonizava o ambiente e superava os refrãos dos vendedores.

Chamava à atenção o cego Gaspar, de grandes olhos brancos e elegantemente trajado de mescla azul da marca Dona Isabel. Ele agradecia cantando: “Deus lhe pague a sua esmola / que mais lhe tenha pra dar / te livre do mal vizinho / que é a pior peste que há”.

Ciço Canam-Canam, fazendo caretas, raspava o reco-reco. Espantava os meninos encostando os beiços no nariz. Cantando uma embolada: “E é papai / E é mamãe / e é titia. Eu canto toda famia, patati, patipatá”.

Galo-de-campina, apelido que louvava o compositor João Ramos, lembrava a invenção musical do passarinho. Chico Mentira tocava um piano ancestral, batendo nas cordas. Somente a música era verdadeira.

Nova Cruz daquele tempo podia concorrer com Carnaúba dos Dantas para merecer o título de A Cidade da Música.

 

 

 

 

 

 

 

 

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