domingo, 12 de fevereiro de 2012



DEÍFILO GURGEL EM VÁRIOS TONS

Um soneto inédito de Deífilo Gurgel
Por Nelson Patriota

Se todo poeta se torna, com o passar dos anos, um metafísico, um filósofo condenado a formular insistentemente perguntas irrespondíveis, não é o caso, então, de censurar o poeta Deífilo Gurgel por ter se dobrado ao metafísico em sua última fase. O soneto “Solidão”, datado de 4 de agosto de 2009, e que nos foi oferecido pelo autor para o n. 4 da Revista do Conselho Estadual de Cultura (ainda inédita), tem em seu último terceto uma síntese, porém, antimetafísica (um tento para Deífilo), comparável àquela de “Preparação para a morte”, de Manuel Bandeira, em sua lucidez chã, sem véu de alegoria. Diz o verso: “Um dia a Morte, monja silenciosa, / me levará também, só, entre rosas, / para a outra margem desta solidão”.

Citemos, porém, os dois quartetos e o terceto faltantes, haja vista que “Solidão”, até onde sabemos, permanece inédito: Com que festejo, agora, esta chegada /de volta à minha terra, ao chão comum, / se todos já partiram, um a um, / levados pelo Vento, para o Nada? // Com quem dividirei minha risada, / se não encontro mais, aqui, nenhum / dos velhos companheiros de jornada, / que o Vento arrebatou, frágeis anuns? // De que me vale perguntar à Morte / por que os levou, para que Sul ou Norte, / se a Morte não responde à indagação? [...]”.

Mas a poesia de Deífilo Gurgel, vasta vaga que se espraia em tantas margens, comporta a cada arremetida um modo de ser e de ver que se desdobra e se diversifica sempre segundo uma lógica própria que lhe é exclusiva. Ao escrever “Uma história da poesia brasileira”, o carioca Alexei Bueno antologiou, dentre os poetas norte-rio-grandenses vivos, apenas Deífilo Gurgel, representado no livro pelo soneto “A praia”. Bueno justificou a escolha sob o argumento de que se tratava de “um dos sonetos mais belos de nossa poesia”. Diva Cunha e Constância Lima Duarte, em sua “Literatura do Rio Grande do Norte: antologia”, também se curvaram ao encanto dos sonetos de Deífilo, e o mesmo aconteceria com Assis Brasil, em seu livro “A Poesia Norte-Rio-Grandense no século XX”, entre outros.

A rigor, Deífilo Gurgel não poderia ser alinhado ao lado de poetas do lado soturno da vida, como uma leitura descontextualizada do soneto “Solidão” poderia sugerir. Nascido e criado numa praia, acostumado à luz abundante e ubíqua que recobre nossa região, ele teria naturalmente que ser um poeta do lado ensolarado da vida, como, de fato, foi. Dito de outra forma, era uma pessoa alegre, otimista e confiante no trabalho que desenvolvia desde muitos anos, fosse na seara da poesia, fosse naquela outra do folclore, da cultura popular, com seus romanceiros, seus autos populares, que encarava como seu verdadeiro trabalho, por requerer método, pesquisa e análise. Em contraste, a poesia às vezes é puro diálogo interior.

Durante alguns meses do ano de 1999, pude conviver de perto Deífilo Gurgel, privando de suas orientações e de seu saber, quando trabalhamos na feitura do livro “400 nomes de Natal”. O livro foi planejado para celebrar os 400 anos de fundação da cidade de Natal, que se festejariam no ano seguinte. Rejane Cardoso, responsável pela coordenação do projeto, além de Manoel Onofre Jr. e Jardelino Lucena, dividiram conosco os ônus desse livro ambicioso e temerário, que reduz à mesma estatura personagens díspares e desiguais da história potiguar.

Mais tarde, eu reencontraria Deífilo Gurgel no Conselho Estadual de Cultura, ao lado de outros companheiros dessa frágil nau que, no fim das contas, é qualquer instituição cultural pública. O velho poeta não se queixava de nada; via com naturalidade a passagem dos anos que, afinal, é uma herança comum a todos os que têm a fortuna de envelhecer. Essa é uma daquelas lições de vida que não se esquece.

* * *


EPITÁFIO


Este foi um homem feliz.
Trabalhou em silêncio,
sua ração cotidiana
de humildes aleg(o)rias
Nunca o seduziu a glória dos humanos
Nem a eternidade dos deuses.
Fez o que tinha de fazer:
repartiu o seu pão entre os humildes,
defendeu como pôde os ofendidos,
semeou esperanças entre os justos,
e partiu, como tinha de partir
feliz com sua vida e sua morte


Deífilo Gurgel
Natal: 27.09.1994



TARRAFAS – Deífilo Gurgel


À sombra do cajueiro que floresce junto ao mar
Paciente o pescador tece a rede de pescar
Enquanto a mão se entretece nesse mister singular
Outra mão por trás do tempo vai tecendo sem cessar
A tarrafa que algum dia, vai pescar o pescador
Juntamente com seu tédio, seu sorriso e sua dor.
E tece com tal mestria essa tarrafa de vento
Que o pescador nunca pensa, quando pesca o seu sustento
Que a morte o está pescando, lentamente, dia a dia
Nessa embora inevitável, invisível pescaria.


Madona

Os passos que perdi, nos descaminhos
e as lágrimas ardentes que chorei;
os risos, os abraços, os carinhos,
tudo que fui, que sou e que serei;
a glória de ser bom entre os espinhos
e de fazer do amor a minha lei;
os versos que espalhei pelos caminhos
e os que, cantando, um dia espalharei,
é tudo teu, Senhora; e se teu filho
não alcançou aquele intenso brilho
que almejaste, um dia, entre esperanças,
ainda é o mesmo que na infância amaste
e com teus gestos brandos ensinaste
a amar o céu, as flores e as crianças.

Deífilo Gurgel


Areia Branca, Meu Amor


DEÍFILO GURGEL


A cidade adormecida,
no coração do poeta,
entre pregões matinais,
subitamente, desperta.


Para trás da Serra Vermelha,
nasce a manhã, nas levadas,
na solidão das salinas,
nas águas envenenadas.


Maçaricos alçam vôo,
nas várzeas de pirrixiu.
pescadores solitários,
pescam o silêncio do rio.


Num bosque de matapasto,
atrás de Amaro Besouro,
desabrocha o fumo bom,
em fino cálices de ouro


Calafates calafetam
velhos barcos irreais.
Moinhos movem o vento,
nas tardes do nunca mais.


O sol se pondo na Barra,.
entre mangues e canoas,
põe rebrilhos de vitrilhos,
nas marolas das gamboas.


A noite cai. Cães vadios
ladram na rua, à distância.
Deslizam sombras esquivas,
nas esquinas da lembrança.


Todos os que se mudaram
para o outro lado da vida
e dormem, no cemitério
da cidade adormecida,


vêm a mim, me cumprimentam,
me comovo ao recebê-los,
baila uma fina poeira,
em torno dos seus cabelos.


Converso com Pum-na-guerra,
Fumo-bom e Baranhaca.
Abraço Maria Mole,


Ciço Cabelo de Vaca.


Passo no Canal do Mangue,
vou à Fuzaca, à Favela.
Na rua da frente há moças
debruçadas na janela.


D. Adelina me argúi
na taboada e ABC.
Começa tudo de novo,


Pela estrada do aprender.


Ouço as valsas da Água Doce,
nas tardes de antigamente.
entre Bois e Pastoris,
sou menino novamente.


As ruas se embandeiraram,
Há lanternas pelas portas.
São João acorda, entre o riso
de pessoas que estão mortas.


Os pés do menino vão
nessas ruas do sem-fim.
O tempo não conta mais,
partiu-se, dentro de mim.


Nesse burgo de lembranças,
guardado pela memória,
minha vida se inicia,
recomeça minha história.



Nenhum comentário:

Postar um comentário