quarta-feira, 24 de setembro de 2025

 JOÃO E IVAN


Valério Mesquita*


Dois irmãos, duas vocações despertadas para o estudo e a aplicação do direito. Quero me referir aos desembargadores aposentados do Tribunal de Justiça João Meira Lima e Ivan Meira Lima. Nasceram em Macaíba, filhos de Francisco Meira Lima e de Isabel Meira Lima. João é da turma de 1955, da Faculdade de Direito do Recife e Ivan da nossa tradicional Faculdade da “Ribeira” do ano de 1960. Os meninos de seu Chico Meira tinham agora pela frente um longo caminho a percorrer. Haviam triunfado sobre as dificuldades que permearam suas vidas e estavam conscientes do enfrentamento de novos desafios. Após passarem por funções burocráticas atingiram finalmente a raia da carreira jurídica, entre os anos de 1957 e 1961.

João Meira Lima o mais velho, começou como juiz de direito de primeira entrância em Apodi (1957) e, a partir daí, continuou a servir com retidão e probidade nas comarcas de Santana do Matos, Currais Novos, João Câmara, Assú e Natal até ser promovido por antiguidade para o cargo de desembargador em 24 de abril de 1987. Na Suprema Côrte de Justiça do Rio Grande do Norte exerceu inúmeros cargos: diretor do Fórum, corregedor geral da Justiça por duas vezes, além de ter servido ao TRE como juiz (dois biênios) e como desembargador, corregedor eleitoral, vice-presidente e presidente.

Além da magistratura, o desembargador João Meira Lima, quando jovem, dedicou-se ao jornalismo, trabalhando no Diário de Natal e O Poti como repórter, na primeira turma de redatores, tendo como chefe, o escritor Américo de Oliveira Costa e o ensaísta Edgar Barbosa.

Dedicou-se ao magistério secundário e superior, lecionando nos seguintes colégios: Colégio Sete de Setembro, Escola Doméstica de Natal, Escola do Comércio de Natal; no ensino superior: Faculdade de Sociologia da Fundação José Augusto (História Econômica e Social Geral), Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Ciências Políticas). Aposentou-se em 1991.
Foi casado com a Sra. Maria Teresa Ribeiro Dantas Meira Lima, com quem teve os seguintes filhos: Maria Eugênia Ribeiro Dantas Meira Lima, Ricardo Ribeiro Dantas Meira Lima e Eduardo Ribeiro Dantas Meira Lima.

É grande dignitário da Maçonaria no Rio Grande do Norte.
Ivan Meira Lima foi nomeado juiz de direito de primeira entrância da comarca de São Rafael em 1961. Em seguida, ocupou as comarcas de Cruzeta, Lajes, Areia Branca, à pedido, foi removido para Lajes e em seguida, da mesma forma, para Nova Cruz, passando ainda por Currais Novos, Natal, chegando a desembargador, por merecimento, em 1984.

Serviu ao Tribunal Regional Eleitoral - TRE na classe de Desembargador (1989-91), onde foi corregedor eleitoral, vice-presidente e presidente por duas vezes. Além da magistratura, o desembargador Ivan Meira Lima dedicou-se ao magistério superior, lecionando as disciplinas de Direito Processual Civil e Direito Eleitoral no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No Tribunal de Justiça, exerceu diversos cargos de direção: 1 - Vice-Presidente (26/11/1986). 2 - Presidente do Tribunal de Justiça no biênio 1995-96. Em sua gestão traçou e cumpriu as seguintes metas: 1 - Reativar a Escola Superior da Magistratura ESMARN. 2 - Criar o Juizado de Pequenas Causas. 3 - Criar mutirão da justiça (Portaria 182/95). 4 - Informatizar todo o Tribunal.

Foi casado em primeiras núpcias com a Dra. Maria de Lourdes Assi Meira Lima, tendo enviuvado, e com quem gerou os seguintes filhos: Dra. Adice Assi Meira Lima, Dr. Francisco José de Assi Meira Lima e Dra. Izabella Assi Meira Lima. Hoje estabeleceu união estável com a Sra. Edna Ubarana.

Os traços biográficos aqui elencados precedem dos comentários que fiz, sobre ambos no ensejo em que atingiram a compulsória no exercício da magistratura no Rio Grande do Norte.

(*) Escritor

 Cuidar da linguagem e comunicação 

Padre João Medeiros Filho 

A humanidade está cansada de guerras, violência, agressividade, tantos descompassos e injustiças sociais. É preciso cuidar da linguagem, seja verbal ou não verbal. Inegavelmente, há quem saiba cuidar bem daquilo que diz e como expressa. Infelizmente, intrigas, discórdias, inimizades e até mortes são geradas pela incapacidade ou inabilidade de se expressar, comunicar e dialogar adequadamente. Em todos os campos da vida, a linguagem adequada faz viver, enquanto a inexata pode levar à morte. Isto pressupõe saber ouvir e falar sem querer ser o centro das atenções e muito menos o senhor da palavra. É inspirada e conhecida a frase de Exupéry: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos.” Segundo alguns exegetas, a metáfora da Torre de Babel não significa meramente a diversidade de idiomas. É a falta de entendimento do que se fala. A essa situação alude também o salmista: “Eles têm boca e não falam; têm ouvidos, e não ouvem” (Sl 115/113B, 5-6). Marshall McLuhan já comentava: “Na Aldeia Global, haverá tribos com linguagens diversas.” É comum ouvir-se a queixa de desentendimento entre pais e filhos, jovens e idosos, em suma, gerações diferentes. Há verdadeiras ilhas, causadas pela linguagem humana, não apenas do ponto de vista linguístico, mas também pelo conteúdo que se pretende transmitir. Consoante a teologia cristã, o homem foi criado à imagem de Deus. Este é Trindade, comunhão e interação. De igual modo é o ser humano, perfilhado por Deus pelo mistério da graça de adoção (Rm 8, 15). Parece que a recomendação bíblica, contida no Livro dos Provérbios, foi esquecida e desprezada: “Quem tem entendimento é comedido no falar, rico em sabedoria e espírito sereno” (Pv 17, 27). É salutar e gratificante, quando se veem pessoas cultivar essa bela arte. São seres que sabem construir pontes e não criam muros que separam. Basta uma palavra mal colocada para gerar conflitos entre os indivíduos. E quando uma autoridade, seja civil ou religiosa, manifesta-se sem o uso do bom senso e a preocupação em construir uma cultura de paz, pode desencadear um estrago grande e imediato. Outrora, cantava-se nas igrejas uma bela música, de autoria da Irmã Irene Gomes: “Palavra não foi feita para dividir ninguém; é uma ponte, aonde o amor vai e vem. Palavra não foi feita para dominar, destino da palavra é dialogar; palavra não foi feita para opressão, seu destino é a união.” Ela não deve ser enunciada com uma carga de ameaça ou opressão, mas como ferramenta de sintonia e encontro. O mau uso da linguagem está se disseminando veloz e indiscriminadamente. Muitos conflitos poderiam ser resolvidos, com diálogo cordial, no qual ninguém se sinta dono da verdade, mas buscando compreender a diferença e aceitar que todos têm direito ao dom da vida. Quando alguém se vê como paladino da verdade, aniquila a possibilidade de diálogo. Isso acarreta esfriamento na relação, que pode chegar a uma convivência insuportável, infelizmente terminando com ruptura. Esse clima vem reinando de maneira mais profunda e estrutural na sociedade. Grupos se organizam e tecem sua linguagem, incapaz de ser compreendida por outros, mormente quando imbuídas de ideologias. Costumam vir envoltas de narrativas e sofismas com o propósito de bloquear o diálogo. Tal fenômeno está generalizado em todos os segmentos, inclusive nas igrejas. Verifica-se a ausência de uma linguagem empregada por todos. Quando um líder religioso se acha autorizado a dizer o que pensa e como pensa, sem levar em conta o essencial de sua missão – primordialmente consistindo em favorecer a unidade e comunhão – vai criando um clima de mal-estar, hostilidade, divisão e isolamento. As igrejas cristãs devem educar, enfatizando o uso puro da linguagem, como sacramento e ícone do encontro. A fala dos fariseus levava à incompreensão de Cristo, que sofreu muitas armadilhas de seus contemporâneos. Os cristãos necessitam ter em mente que eles são mensageiros de Cristo, o Verbo Divino. Mister se faz crescer no aprendizado benéfico da linguagem. A alegoria narrada pelos Atos dos Apóstolos, a respeito da vinda do Espírito Santo, deve ser seguida e vivida. Pentecostes é a resposta ao acontecimento da Torre de Babel. “E todos se entendiam, como se falassem sua própria língua” (At 2, 6).

domingo, 21 de setembro de 2025

 

Texto de MÁRCIO DE LIMA DANTAS

Jardel: o silêncio que sopra sussurros de longe 

Os humanos são sozinhos. Por mais que haja amizade, amor, companhia, a solidão é da essência. Clarice Lispector 

 

1. Jardel (João Pessoa, 16.12.1938-23.03.2021). Estudou em Louvain, na Bélgica. Aportou em Natal em 2001. Já em 2002, encontrou uma pessoa que foi seu grande amor até sua partida. O casal foi residir em um condomínio bem bucólico, com casas extremamente pitorescas (ficava à beira do rio Pium, com mata exuberante erguendo-se para fazer uma espécie de moldura), logo quando se chega de automóvel no distrito Pium, com seu pequeno rio que mansamente desce, estreito e plácido, com uma planta aquática, aguapé, recobrindo partes ou seguindo dos dois lados do fio de água. O condomínio se chamava Vila Feliz (residiram lá de dezembro de 2002 até 2004. Era afeito à gastronomia, assim, com sua esposa, recebia os amigos, era extremamente gentil com todos, gostava de conversar, um riso contagiante). Eis a geografia por onde palmilhou, sempre por lugares amenos, talvez em busca de exercitar seus silêncios intermináveis, sua introspecção, como se fosse espécie vegetal, uma planta no jardim ou na varanda do apartamento. Era feito um pé de bonina, que resta viçosa durante o dia, e à noite rebenta suas delicadas flores, com odor sutil, perfume que não invade, mas permanece.

Ali, na Vila Feliz, seu refúgio verde, Jardel plantou não só árvores mas também imagens. Cada tela parece flor nascida desse jardim de sossegos, de remansos que nos impedem de a gente se tatear, apalpar o espírito, pois acaba encontrando algum achaque adormecido do corpo. Era como se ali, entre o pipilar das aves e o rumor das folhas, tivesse encontrado aquilo que a maioria dos homens passa a vida a buscar, mas raramente admite: o direito à paz, à brisa leve. A presença nesse lugar atenuava e estirava os dias, tornando-os mais longos, em uma benfazeja ordem interior de aproveitar o claro e o escuro do ciclo de um dia. Cronos, o tempo, corre disparado, açoitando os cavalos com azorragues, em uma pressa que não faz sentido, na medida em que não chega a lugar algum, apenas abrevia a noção do tempo e segue deixando as mantilhas negras e o luto pelos caminhos, rodagens e por onde existir um senciente.

O certo é que residia em uma espécie de pátio, tudo tendo a ver com ele e sua companheira (também artista visual). Esse condomínio, edificado pelo historiador Hélio de Oliveira em forma de pátio retangular, era, na verdade, a reprodução de um aldeamento português nos primórdios da colonização (séc. XVII). As casas, todas iguais, só alteravam a cor, com seus graciosos alpendres, lugar para armar uma rede. No centro, uma singela capela barroca, santos autênticos, uma cruz defronte, em homenagem à Nossa Senhora do Bom Parto, por trás tem um chafariz. Para quem gosta de história, é bom saber que essa cópia, como já dissemos, é aldeamento missionário dos jesuítas. Outrossim, também levou em conta os cinco primeiros aldeamentos que se tornaram as cinco primeiras cidades do Rio Grande do Norte: Apodi, Extremoz (Guajiru), Arês, Vila Flor, São José de Mipibu. Infelizmente pouco resta, ou nada, dessa época.

2. Enquanto tantos se rendiam ao espírito da época — essa engrenagem que exige pressa, ruído, visibilidade, narcisismo — Jardel recolhia-se. Sabia que não cabia nas formas do mundo veloz. E escolheu o contrário: cultivar o silêncio como quem cultiva manjericão na varanda. O que há de melhor do que uma paisagem tranquila, fresca, verde? Aquele é um lugar onde se olha pela janela e se vê o vizinho passar, com um breve cumprimento. É a vida que segue, sem pressa, sem espetáculo, sem disputas nem pessoas tóxicas.

Naquele pequeno Éden do Rio Grande do Norte, o tempo parecia repousar em seu regaço, entre suas pernas, com conforto e dormindo feito gato na janela. Seu pincel era o jardineiro paciente das horas, cuidando com delicadeza dos instantes que o mundo, ensurdecido, não mais percebia. Sua pintura não nega esse ethos (caráter) de quem prefere contemplar de longe, a distância, a paisagem pintada, retendo sua quietude e o tempo inteiro buscando, com seus pincéis mais finos, reproduzir os detalhes daquilo que a cultura ergueu, quer dizer, como se edificaram pontes, edifícios, casarios de pessoas modestas, justapostas, encostando suas cores.

Acontece um fenômeno curioso: não aparece a figura humana. Essa maneira de contemplar o mundo no qual se vive vem ao encontro de querer sempre uma distância, permanecendo quase sempre longínquo. Foi ao que me referi lá atrás, ao fato da não retratação do humano nos seus quadros, bem como ao fato de morar na Vila Feliz, comarca na qual o silêncio recebe o húmus para que as plantas sejam viçosas, joguem cores na realidade, perfumem as casas, como se fosse jasmins plantados ao pé de uma janela.

3. Vejamos, para detalhar mais um pouco. Há uma distância habitual em seus quadros, o ponto de vista é quase sempre o do que contempla de longe. Como se o olhar se colocasse do outro lado do rio, do outro lado do tempo. Jardel não buscava o flagrante, mas o eco. Observava como quem respeita um rito antigo, como se estivesse sempre à porta, sem nunca cruzar o limite.

Esse recuo do olhar, longe de omissão, é gesto de devoção, como quem reconhece que, para ver com verdade, é preciso dar um passo para trás. A ausência de figuras humanas intensifica esse efeito: cada barco ancorado, cada rua sem gente, cada construção adormecida guarda o mistério do que passou. Eis o segredo: o artista pintava o que já não está, e, dessa maneira, o que fez foi um registro de um tempo e de um lugar, como se tivesse um caderno íntimo para anotar não os eventos da socialidade, mas os distritos onde sucederam eventos da condição humana.

Os escritos e os desenhos do caderno, transfigurados (mímesis) para as telas, remetem à posteridade de como era a paisagem, de como viviam os homens, de como tudo é impermanente, de como tudo passa. Tudo é impermanente, só o que é permanente é a impermanência (aforismo budista). Assim, sua companheira, aquela que foi seu grande amor até o fim, guarda com carinho aquilo que lhe pertenceu. De outra feita, com outro sentido, esse guardar os resíduos ou pertences que eram dele, e que foram manuseados pelos dois, também a torna uma arqueóloga, isolando a presença de Afrodite (do amor), podendo mostrar a quem interessar possa como era a cidade do Natal.

4. Curioso é notar que, fora das telas, Jardel era figura de presença viva. Gostava de livros, de ordem e método; tinha gosto por cozinhar, por rodearse de amigos em bares onde as histórias fluíam. No entanto, nada disso aparece em suas pinturas. Ali, reina o oposto: o recolhimento, a paz, a organização do mundo sem vozes. É como se, ao pintar, ele se despisse da algaravia da vida e retornasse ao lugar onde queria estar.

As telas de Jardel possuem um sopro silencioso. As cores não gritam: murmuram. São compostas em gamas suaves, frequentemente com o céu azul-acinzentado, em que o branco das nuvens parece repousar sobre as casas. Os ocres dos muros antigos, os verdes silenciosos das dunas, os reflexos perolados do rio Potengi, tudo é aplicado com a delicadeza de quem acaricia a superfície com o pincel.

A luz não vem de fora, mas de dentro das cenas. É como se as paisagens tivessem guardado a claridade da manhã ou da véspera do entardecer. Essa luz não aparente, difusa, tem algo de milagre doméstico, como o acender de uma vela antes da reza. Há uma paz que emana dessas composições, como silêncio de uma casa limpa ao fim de tarde.

Na obra “vista do Areal com a capelinha”, a pequena igreja repousa como uma oferenda. Jardel não a coloca no centro; ela está levemente deslocada, quase tímida, mas é esse recuo que a torna sagrada. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original, que contempla lá longe a paisagem plácida do estuário do rio Potengi, parece até que a pessoa está diante da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos, mirando a cidade com reverência e recato. A rua que leva até a capelinha é uma espécie de caminho iniciático, uma via sem alarde, ladeada de memórias. A textura das casas em volta parece feita com pó de lembrança.

Na tela onde se vê a Praia do forte, e também os tanques da Petrobras, o concreto das estruturas industriais convive com a leveza das ondas. O azul do mar, tingido por reflexos de um céu velado, toca os tanques como se quisesse abençoá-los. Jardel, nesse caso, harmoniza o que normalmente seria dissonante – e o faz com elegância. As linhas retas dos tanques são como partituras, e o mar é a melodia que as percorre.

5. Na tela onde aparece o rio Potengi, o mar, as dunas e antigas construções, o pintor atinge sua mais alta pronúncia estética. Essa tela — pode ser eleita como sua opus Magnum — condensa toda a sua poética visual. Nessa tela, há a presença das Moiras, as tecelãs do destino, invisíveis, porém operantes. A urdidura da vida pulsa na margem do rio, nas dunas dobradas como planejamento que o tempo segue dobrando, e nas velhas casas que parecem guardar dentro de si um segredo não revelado. Como Cloto que fia o fio, Láquesis que mede e Átropos que corta, o pincel de Jardel se move como instrumento dessas divindades, fiando nas margens da cidade o fio sutil do que deve permanecer. Não há morte no corte final, mas transformação em cor, linha e memória.

É um quadro que não retrata: consagra. A cidade aparece como um relicário de silêncio, guardando em suas formas imóveis a pulsação do que foi. O traço é contido, a composição serena. Não há ostentação. A técnica, acrílica sobre tela, opera como fio de tear invisível. O que se vê é o que permanece, mesmo depois que tudo tenha mudado. Urdir é prerrogativa de Cronos (o tempo), nunca cessa. O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). Os pósteros que incorporem sem escrúpulos as transformações, outros lamentem o que foi desfeito e era pura beleza, como belíssimas fachadas da Ribeira. A medida desse sentimento de valorizar o que outrora foi erguido e ainda reverbera na cidade Alta – como a Igreja do Rosário dos Pretos ou a Igreja de Santo Antônio – podemos mensurar através de um olhar que procura reter as coisas belas do passado. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original que contempla, lá longe, a paisagem plácida do estuário do rio Potengi. Parece que as pessoas estavam na frente da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos.

6. Jardel não buscava o extraordinário. Seu tema era o ordinário que, por força do olhar, transfigura-se. Como os antigos monges que copiavam manuscritos à mão, ele pintava com vagar, sabendo que cada cor carregava uma partitura de emoção. Suas telas são como pequenas orações visuais. Se a arte do Rio Grande do Norte, muitas vezes, escora-se nos mitos religiosos, Jardel escolheu o outro caminho: o da contemplação. Sua fé é no que permanece. No muro antigo. Na rua deserta. No barco silencioso. Pintava como quem se despede com ternura. Por isso, tudo permanece.

Talvez ele tenha, de fato, pintado um jardim, no qual pedira licença aos homens para se retiraram, pois dissera de antemão que precisava de remanso. Esse jardim, feito de telas, cores, continuou florescendo mesmo após a partida do seu jardineiro. Isso mesmo, haverá uma mulher que guardará um resto do luto não totalmente comprido, uma cicatriz na qual alterna a intensidade da dor (varia de dia para dia). Porém, está tudo pago (Edith Piaf), nenhum dos dois deve nada a ninguém, nem entre si, pois o verdadeiro amor consegue urdir tacitamente essa ventura de compreender os defeitos de um e de outro, para que se erga um monólito de puro granito, quedado em homenagem a um puro amor, no qual a quietude e o sossego desfizeram as fronteiras de qualquer tipo, fundindo-se no distrito da compaixão e da beleza de quem conheceu a felicidade.

 

Jardel: o silêncio que sopra sussurros de longe 

Os humanos são sozinhos. Por mais que haja amizade, amor, companhia, a solidão é da essência. Clarice Lispector 

1. Jardel (João Pessoa, 16.12.1938-23.03.2021). Estudou em Louvain, na Bélgica. Aportou em Natal em 2001. Já em 2002, encontrou uma pessoa que foi seu grande amor até sua partida. O casal foi residir em um condomínio bem bucólico, com casas extremamente pitorescas (ficava à beira do rio Pium, com mata exuberante erguendo-se para fazer uma espécie de moldura), logo quando se chega de automóvel no distrito Pium, com seu pequeno rio que mansamente desce, estreito e plácido, com uma planta aquática, aguapé, recobrindo partes ou seguindo dos dois lados do fio de água. O condomínio se chamava Vila Feliz (residiram lá de dezembro de 2002 até 2004. Era afeito à gastronomia, assim, com sua esposa, recebia os amigos, era extremamente gentil com todos, gostava de conversar, um riso contagiante). Eis a geografia por onde palmilhou, sempre por lugares amenos, talvez em busca de exercitar seus silêncios intermináveis, sua introspecção, como se fosse espécie vegetal, uma planta no jardim ou na varanda do apartamento. Era feito um pé de bonina, que resta viçosa durante o dia, e à noite rebenta suas delicadas flores, com odor sutil, perfume que não invade, mas permanece. Ali, na Vila Feliz, seu refúgio verde, Jardel plantou não só árvores mas também imagens. Cada tela parece flor nascida desse jardim de sossegos, de remansos que nos impedem de a gente se tatear, apalpar o espírito, pois acaba encontrando algum achaque adormecido do corpo. Era como se ali, entre o pipilar das aves e o rumor das folhas, tivesse encontrado aquilo que a maioria dos homens passa a vida a buscar, mas raramente admite: o direito à paz, à brisa leve. A presença nesse lugar atenuava e estirava os dias, tornando-os mais longos, em uma benfazeja ordem interior de aproveitar o claro e o escuro do ciclo de um dia. Cronos, o tempo, corre disparado, açoitando os cavalos com azorragues, em uma pressa que não faz sentido, na medida em que não chega a lugar algum, apenas abrevia a noção do tempo e segue deixando as mantilhas negras e o luto pelos caminhos, rodagens e por onde existir um senciente. O certo é que residia em uma espécie de pátio, tudo tendo a ver com ele e sua companheira (também artista visual). Esse condomínio, edificado pelo historiador Hélio de Oliveira em forma de pátio retangular, era, na verdade, a reprodução de um aldeamento português nos primórdios da colonização (séc. XVII). As casas, todas iguais, só alteravam a cor, com seus graciosos alpendres, lugar para armar uma rede. No centro, uma singela capela barroca, santos autênticos, uma cruz defronte, em homenagem à Nossa Senhora do Bom Parto, por trás tem um chafariz. Para quem gosta de história, é bom saber que essa cópia, como já dissemos, é aldeamento missionário dos jesuítas. Outrossim, também levou em conta os cinco primeiros aldeamentos que se tornaram as cinco primeiras cidades do Rio Grande do Norte: Apodi, Extremoz (Guajiru), Arês, Vila Flor, São José de Mipibu. Infelizmente pouco resta, ou nada, dessa época. 2. Enquanto tantos se rendiam ao espírito da época — essa engrenagem que exige pressa, ruído, visibilidade, narcisismo — Jardel recolhia-se. Sabia que não cabia nas formas do mundo veloz. E escolheu o contrário: cultivar o silêncio como quem cultiva manjericão na varanda. O que há de melhor do que uma paisagem tranquila, fresca, verde? Aquele é um lugar onde se olha pela janela e se vê o vizinho passar, com um breve cumprimento. É a vida que segue, sem pressa, sem espetáculo, sem disputas nem pessoas tóxicas. Naquele pequeno Éden do Rio Grande do Norte, o tempo parecia repousar em seu regaço, entre suas pernas, com conforto e dormindo feito gato na janela. Seu pincel era o jardineiro paciente das horas, cuidando com delicadeza dos instantes que o mundo, ensurdecido, não mais percebia. Sua pintura não nega esse ethos (caráter) de quem prefere contemplar de longe, a distância, a paisagem pintada, retendo sua quietude e o tempo inteiro buscando, com seus pincéis mais finos, reproduzir os detalhes daquilo que a cultura ergueu, quer dizer, como se edificaram pontes, edifícios, casarios de pessoas modestas, justapostas, encostando suas cores. Acontece um fenômeno curioso: não aparece a figura humana. Essa maneira de contemplar o mundo no qual se vive vem ao encontro de querer sempre uma distância, permanecendo quase sempre longínquo. Foi ao que me referi lá atrás, ao fato da não retratação do humano nos seus quadros, bem como ao fato de morar na Vila Feliz, comarca na qual o silêncio recebe o húmus para que as plantas sejam viçosas, joguem cores na realidade, perfumem as casas, como se fosse jasmins plantados ao pé de uma janela. 3. Vejamos, para detalhar mais um pouco. Há uma distância habitual em seus quadros, o ponto de vista é quase sempre o do que contempla de longe. Como se o olhar se colocasse do outro lado do rio, do outro lado do tempo. Jardel não buscava o flagrante, mas o eco. Observava como quem respeita um rito antigo, como se estivesse sempre à porta, sem nunca cruzar o limite. Esse recuo do olhar, longe de omissão, é gesto de devoção, como quem reconhece que, para ver com verdade, é preciso dar um passo para trás. A ausência de figuras humanas intensifica esse efeito: cada barco ancorado, cada rua sem gente, cada construção adormecida guarda o mistério do que passou. Eis o segredo: o artista pintava o que já não está, e, dessa maneira, o que fez foi um registro de um tempo e de um lugar, como se tivesse um caderno íntimo para anotar não os eventos da socialidade, mas os distritos onde sucederam eventos da condição humana. Os escritos e os desenhos do caderno, transfigurados (mímesis) para as telas, remetem à posteridade de como era a paisagem, de como viviam os homens, de como tudo é impermanente, de como tudo passa. Tudo é impermanente, só o que é permanente é a impermanência (aforismo budista). Assim, sua companheira, aquela que foi seu grande amor até o fim, guarda com carinho aquilo que lhe pertenceu. De outra feita, com outro sentido, esse guardar os resíduos ou pertences que eram dele, e que foram manuseados pelos dois, também a torna uma arqueóloga, isolando a presença de Afrodite (do amor), podendo mostrar a quem interessar possa como era a cidade do Natal. 4. Curioso é notar que, fora das telas, Jardel era figura de presença viva. Gostava de livros, de ordem e método; tinha gosto por cozinhar, por rodearse de amigos em bares onde as histórias fluíam. No entanto, nada disso aparece em suas pinturas. Ali, reina o oposto: o recolhimento, a paz, a organização do mundo sem vozes. É como se, ao pintar, ele se despisse da algaravia da vida e retornasse ao lugar onde queria estar. As telas de Jardel possuem um sopro silencioso. As cores não gritam: murmuram. São compostas em gamas suaves, frequentemente com o céu azul-acinzentado, em que o branco das nuvens parece repousar sobre as casas. Os ocres dos muros antigos, os verdes silenciosos das dunas, os reflexos perolados do rio Potengi, tudo é aplicado com a delicadeza de quem acaricia a superfície com o pincel. A luz não vem de fora, mas de dentro das cenas. É como se as paisagens tivessem guardado a claridade da manhã ou da véspera do entardecer. Essa luz não aparente, difusa, tem algo de milagre doméstico, como o acender de uma vela antes da reza. Há uma paz que emana dessas composições, como silêncio de uma casa limpa ao fim de tarde. Na obra “vista do Areal com a capelinha”, a pequena igreja repousa como uma oferenda. Jardel não a coloca no centro; ela está levemente deslocada, quase tímida, mas é esse recuo que a torna sagrada. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original, que contempla lá longe a paisagem plácida do estuário do rio Potengi, parece até que a pessoa está diante da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos, mirando a cidade com reverência e recato. A rua que leva até a capelinha é uma espécie de caminho iniciático, uma via sem alarde, ladeada de memórias. A textura das casas em volta parece feita com pó de lembrança. Na tela onde se vê a Praia do forte, e também os tanques da Petrobras, o concreto das estruturas industriais convive com a leveza das ondas. O azul do mar, tingido por reflexos de um céu velado, toca os tanques como se quisesse abençoá-los. Jardel, nesse caso, harmoniza o que normalmente seria dissonante – e o faz com elegância. As linhas retas dos tanques são como partituras, e o mar é a melodia que as percorre. 5. Na tela onde aparece o rio Potengi, o mar, as dunas e antigas construções, o pintor atinge sua mais alta pronúncia estética. Essa tela — pode ser eleita como sua opus Magnum — condensa toda a sua poética visual. Nessa tela, há a presença das Moiras, as tecelãs do destino, invisíveis, porém operantes. A urdidura da vida pulsa na margem do rio, nas dunas dobradas como planejamento que o tempo segue dobrando, e nas velhas casas que parecem guardar dentro de si um segredo não revelado. Como Cloto que fia o fio, Láquesis que mede e Átropos que corta, o pincel de Jardel se move como instrumento dessas divindades, fiando nas margens da cidade o fio sutil do que deve permanecer. Não há morte no corte final, mas transformação em cor, linha e memória. É um quadro que não retrata: consagra. A cidade aparece como um relicário de silêncio, guardando em suas formas imóveis a pulsação do que foi. O traço é contido, a composição serena. Não há ostentação. A técnica, acrílica sobre tela, opera como fio de tear invisível. O que se vê é o que permanece, mesmo depois que tudo tenha mudado. Urdir é prerrogativa de Cronos (o tempo), nunca cessa. O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). Os pósteros que incorporem sem escrúpulos as transformações, outros lamentem o que foi desfeito e era pura beleza, como belíssimas fachadas da Ribeira. A medida desse sentimento de valorizar o que outrora foi erguido e ainda reverbera na cidade Alta – como a Igreja do Rosário dos Pretos ou a Igreja de Santo Antônio – podemos mensurar através de um olhar que procura reter as coisas belas do passado. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original que contempla, lá longe, a paisagem plácida do estuário do rio Potengi. Parece que as pessoas estavam na frente da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos. 6. Jardel não buscava o extraordinário. Seu tema era o ordinário que, por força do olhar, transfigura-se. Como os antigos monges que copiavam manuscritos à mão, ele pintava com vagar, sabendo que cada cor carregava uma partitura de emoção. Suas telas são como pequenas orações visuais. Se a arte do Rio Grande do Norte, muitas vezes, escora-se nos mitos religiosos, Jardel escolheu o outro caminho: o da contemplação. Sua fé é no que permanece. No muro antigo. Na rua deserta. No barco silencioso. Pintava como quem se despede com ternura. Por isso, tudo permanece. Talvez ele tenha, de fato, pintado um jardim, no qual pedira licença aos homens para se retiraram, pois dissera de antemão que precisava de remanso. Esse jardim, feito de telas, cores, continuou florescendo mesmo após a partida do seu jardineiro. Isso mesmo, haverá uma mulher que guardará um resto do luto não totalmente comprido, uma cicatriz na qual alterna a intensidade da dor (varia de dia para dia). Porém, está tudo pago (Edith Piaf), nenhum dos dois deve nada a ninguém, nem entre si, pois o verdadeiro amor consegue urdir tacitamente essa ventura de compreender os defeitos de um e de outro, para que se erga um monólito de puro granito, quedado em homenagem a um puro amor, no qual a quietude e o sossego desfizeram as fronteiras de qualquer tipo, fundindo-se no distrito da compaixão e da beleza de quem conheceu a felicidade.