sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

 SALDO DE RETALHOS


Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Fotos, recortes amarelecidos de jornais, álbuns perdidos,
lembranças mortas, tudo se resume no que ficou de mim no caixote que mandei
buscar em Macaíba. Quase cinquenta anos estavam ali amontoados sem me
passar a certeza de que fui feliz. Viagens, lugares, reuniões, festas, política e
políticos, o lar, as pessoas, o trabalho, os entes queridos, a entrevistas, os fatos,
os enganos e os engodos, as ações e as traições, as frustrações, tudo, enfim, um
baú de vida tecida e vertida em momentos fugazes mas com profundidade.
Mesmo assim, era o meu inventário de aparências. O revelado e o relevante.
Sim, porque as verdadeiras ações ficaram no pensamento, no que quis realizar e
não consegui: porque o melhor de todos nós se encontra no irrevelado.

Sobre a mesa, o pacote empoeirado desafiava-me a memória. De
plano, lembrei-me que muitos desses documentos foram náufragos há quase
quarenta anos, aproximadamente, de uma enchente que inundou a rua Francisco
da Cruz nº 39, de minha mãe. Com a permissão do destino os papéis não foram
afetados menos outros, levados pela correnteza. Naqueles ali apenas constatei o
pó e a pigmentação do tempo. Estava diante de mim mesmo resumida a maior
parte de minha vida? Perguntei-me. Vejam mesmo, meus caros leitores, o
quanto é fuleira a vida quando a colecionamos ou a resumimos em vaidades. Era
feliz e não sabia? Frase babaca essa e desnecessária ao texto. O fato é que
enfrentei a memória contextual, os meus pedaços de vida, soltos, saídos do útero
da casa mater, como único e suficiente tesouro do eterno aprendiz.

Um pacotaço maior e robusto havia me surpreendido à esquerda,
naquela tarde de redescobertas. Tratava-se da coleção de diplomas,
condecorações, títulos, troféus, placas, medalhas, etc. Era a coleção “vanitas,
vanitatis”, que pendurara, ao longo do tempo, nas paredes da sala da frente.

Testemunhas documentais de homenagens passageiras. Do mérito bajulatório
umas e de fiéis reconhecimentos, outras. Enfim, passatempos. De que me servirá
hoje tudo isso porquanto só a mim interessa? Penso assim, porque sempre o
mundo dá e ele mesmo tira. O que importa é que agora sem a casa de Macaíba
não tenho onde colocar meus inúmeros penduricalhos. Resido em casa menor,
despojada de arquitetura senhorial que abrigava com pompa e circunstância
meus escombros de guerra.

Mas, há algo que lá deixei, além das sementes e da vida dos meus
pais, em cada parede, sala e jardins. Uma iniciada biblioteca constituída de bons
livros de autores nacionais e principalmente do Rio Grande do Norte. Nas boas
mãos de uma bibliotecária pode representar um bom começo para os futuros
habitantes. Doei a Fundação José Augusto e a Casa da Cultura de Macaíba
“Nair de Andrade Mesquita” na expectativa maior de que os jovens conheçam
mais os autores potiguares. Em suma, eis o meu inventário. Modesto, raquítico,
dietético, extraído daquele casarão onde habitou tanto amor, enxugou muitas
lágrimas e perfumou sorrisos. Mas, ali tudo era assim mesmo: modesto, pobre,
sem ostentação. Era verdadeiramente a casa do povo e que se tornou da cultura
municipal, sem deixar de ser do povo. Não sei, mas sinto que há desígnio
superior em tudo isso.

(*) Escritor

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