Voz, palavra e silêncio
Padre João Medeiros Filho
Santo Agostinho, com sua sabedoria e profundidade teológica, mística e poética, discorre em um dos seus sermões sobre a voz e a palavra. A primeira é a sucessão de sons e tons. A segunda, o pensamento organizado. Uma é instrumento; a outra traz conteúdo ou mensagem. A reflexão agostiniana poderá servir de remédio para a verborragia descontrolada do tempo presente, facilitada pelas redes sociais. A pletora de falas nem sempre equivale a diálogo e solidariedade. Na aludida homilia, o Bispo de Hipona refere-se a dois personagens bíblicos: João Batista e Jesus. Aquele denominava-se “A voz que clama no deserto” (Jo 1, 23). E no prólogo do quarto evangelho, identifica-se Cristo como a Palavra. “No princípio era o Verbo e este estava em Deus” (Jo 1, 1).
A voz é efêmera, submete-se à matéria e temporalidade, “sendo uma das últimas coisas que mudam no ser humano”, consoante a brilhante professora Cleonice Berardinelli. A palavra é irreversível. Sem a verbalização consciente e lógica, tudo não passa de ecos. A prédica agostiniana constitui-se em rico ensinamento para a sociedade hodierna, carente de diálogos mais harmônicos e assertivos para garantir a verdadeira liberdade de expressão. O saudoso Dom José de Medeiros Delgado, quando chegou à diocese de Caicó (RN), repetia aos oito padres que integravam o seu presbitério: “Deveis ser “homens de palavra e da Palavra. Chega de falas inócuas.”
Para os cristãos há necessidade de jejum da língua e tirocínio do silêncio, uma das delicadezas divinas para os seres humanos. Na Babel da contemporaneidade tornam-se ainda mais urgentes atitudes de conversão, convergência e unidade. Para isso, requer-se silêncio. A palavra é sua filha. O Verbo divino brotou da eternidade tácita de Deus. Fala-se muito, mas pouco se constrói com a disseminação atual de discursos despidos de sentido e luz. Na verdade, corre-se o risco de prejuízos relevantes. A voz desvinculada da verdade poderá compor um coro de inutilidades. E desnudada da sabedoria ressoa ao ouvido, mas não alimenta o nosso coração.
Apegar-se ao direito de usar a voz para expressar simplesmente juízos e opiniões não pode ser considerada uma atitude ética e cristã. Para o cristianismo a prerrogativa de expressar-se é indissociável do compromisso com a veracidade dos fatos e falas edificantes. É um dos requisitos para seguir o Evangelho. Hoje, prega-se o direito à liberdade de expressão a qualquer preço, não importando quando, nem como. Mas, censura-se, cala-se, oprime-se e pune-se quem possui discurso discordante. Convém lembrar que a cruz de Cristo é o ápice da censura. A comunicação só faz sentido se construir e não demolir. Não raro, invoca-se o direito à liberdade de expressão para reivindicar, agredir, destruir e não edificar. Os discípulos de Jesus Cristo devem levar mensagens do Bem. Por coerência e fidelidade ao Mestre, o cristão não detém o apanágio de falar o que é alheio à edificação do próximo e à construção da unidade. Imbuído do espírito evangélico, tem a missão de expressar o que pode gerar lucidez e esperança ao mundo. Deste modo, contribuirá para o fortalecimento da fraternidade e dos vínculos sociais. “Quem guarda a própria boca preserva a vida, quem se descuida no falar, causa a própria ruina”, assevera o Livro dos Provérbios (Pr 13, 3).
Segundo Santo Agostinho, João Batista “era semelhante a um sino, acenando para o Verbo encarnado.” Promoveu o seu acolhimento, revelando-o como “lâmpada para os nossos pés e luz para as nossas veredas” (Sl 119/118, 105). Sendo um discípulo exemplar, o Precursor indicou a Palavra, tornando-se assim referência e modelo de seguidor do Nazareno. É inspiração para aqueles que assumem o compromisso de proclamar a Boa Nova, possibilitando o encontro com Cristo. João se considerava uma fagulha, temendo que o vento do orgulho pudesse apagá-la. Inspirados no exemplo do Filho de Zacarias, os cristãos procurem ser mais simples, valendo-se humildemente dos lábios para anunciar a Palavra, seguindo a recomendação do apóstolo Paulo: “Proclama-a, insiste oportuna e inoportunamente, convence, exorta com toda a longanimidade e empenho em instruir” (2Tm 4, 2).
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