terça-feira, 17 de abril de 2012

   Igreja de Westminster                   Abadia de Westminster
 
A IGREJA ANGLICANA [FINAL]
Por Marcelo Alves Dias de Souza

Semana passada, conversamos aqui um pouco sobre a história da Igreja Anglicana. Hoje, vamos ver a quantas anda essa Igreja.

Primeiramente, constitucionalmente falando, embora continue misturando uma fortíssima herança católica (que remonta aos primeiros séculos depois de Cristo) com as ideias reformistas de Calvino (1509-1564), a Igreja da Inglaterra, como foi dito anteriormente, não está submetida à autoridade papal. O Monarca inglês, presentemente a Rainha Elizabeth II, é a autoridade suprema da Igreja da Inglaterra (e também o é da Igreja da Escócia). Pelo menos no papel, como dizemos. Segundo li em “Britain for Learns of English” (2011, de autoria de James O’Driscoll e publicado pela Oxford University Press), Inglaterra e Escócia são os únicos casos remanescentes, na Europa, de países com religiões legalmente (ou constitucionalmente) oficiais. Em segundo lugar, doutrinária ou teologicamente falando, o “English Book of Common Prayer” (com as devidas adaptações ao longo dos séculos) e a versão autorizada da Bíblia do Rei Jaime (“King James Bible”) são os textos básicos da fé Anglicana.

A estruturação da Igreja Anglicana é muito parecida com a da Igreja Católica (que, na Inglaterra, sob a autoridade máxima do Papa, é liderada pelo Cardeal-Arcebispo de Westminster e tem sede na catedral de mesmo nome – cuidado para não confundir com a “Abadia de Westminster”, esta anglicana). Basicamente, no topo da hierarquia da Igreja Anglicana, há dois arcebispados, o de Canterbury e o de York. Abaixo estão os bispados (ou dioceses) e, em seguida, as paróquias. Os clérigos recebem, nas devidas traduções para o inglês, nomes muito parecidos com os da Igreja Católica: “archbishops”, “bishops”, “priests”, “vicars”, “chaplains” e por aí vai. Diferenças existem, claro. Por exemplo, os clérigos anglicanos sempre puderam se casar. E, desde a década de 1990, algo bastante avançado e controverso à época (a mudança na regra passou com apenas dois votos a mais do que os dois terços exigidos), mulheres podem fazer parte de clero. Ademais, claramente misturando religião com política, 26 bispos da Igreja Anglicana são membros da “House of Lords” (uma das casas do Parlamento inglês), entre eles, necessariamente, os arcebispos de Canterbury e York e os bispos de Londres, Durhan e Winchester.

O Arcebispado de Canterbury, cidadezinha no sudeste da Inglaterra, é o mais importante na hierarquia da Igreja (ou mesmo da Comunhão) Anglicana. O seu arcebispo é o líder religioso da Igreja Anglicana. Talvez por isso, ele, curiosamente, more em Londres (no Lambeth Palace) e não em Canterbury (como era de se supor). Em seguida, vem o Arcebispado de York. A cidade de York, aliás, merece uma visita para quem vem por estas bandas. Cortada pelo rio Ouse, é belíssima. Um intricado de ruelas que nos faz, prazerosamente, confundir passado e presente. De quebra, a catedral de York (York Minster), considerada a segunda maior no estilo gótico no norte da Europa, é de tirar o fôlego.

No mais, levando em conta uma pesquisa de 2005, sobre o comportamento social dos britânicos, cerca de 53% destes se dizem cristãos (esses números diferem um pouco do senso nacional de 2001, que aponta algo em torno de 72% de cristãos, quase três quartos da população total da Ilha). Desses 53%, praticamente a metade, um pouco mais de 26%, se afirma anglicano. Cerca de 10% da população se diz católica, com o restante compondo os percentuais das demais denominações cristãs. Entretanto, assim como se dá com o catolicismo no Brasil, um percentual muitíssimo pequeno frequenta regulamente a igreja para missas e assemelhados. Esse baixo percentual de comparecimento à igreja pode até parecer estranho, já que, pelo que sei, legalmente é obrigado, nas escolas públicas, haver algum tipo de culto coletivo. Mas o fato é que, embora não oficialmente, a Inglaterra se considera um país secular.

Por fim, para quem não sabe, a Igreja da Inglaterra passa agora por outro momento crucial. Nada que se compare às estripulias do período “Tudor”, claro. Na verdade, o teólogo Rowan Douglas Williams (1950-), 104º e atual Arcebispo de Canterbury, considerado um liberal e um pacifista (o que sempre fomentou a ira dos mais conservadores e dos radicais), anunciou que vai renunciar (previsão para dezembro de 2012). Não se preocupem, nenhum escândalo. Jovem, com pouco mais de 60 anos de idade e 10 de arcebispado, acha que cumpriu o seu papel na Sé. Irá ocupar um posto na Universidade Cambridge e dar o lugar aos ainda mais jovens. O favorito para sucedê-lo é Arcebispo de Canterbury de York, John Sentamu (nascido em 1949 e, por alguns, considerado “velho” para o cargo), natural de Uganda, negro e com um bela história de vida. Além de teólogo, é formado em Direito, tendo exercido essa profissão até ser preso pela ditadura de então e de ter de sair do seu país natal. Os partidários do Arcebispo Sentamu já estão nos jornais, com declarações como “let African faith lead the Church of England”, para influenciar a Rainha que, constitucionalmente (após muita política, claro), indica o líder espiritual de sua Igreja.

O fato é que, seja quem for o próximo Arcebispo de Canterbury, a Igreja da Inglaterra, para sobreviver, terá de lidar a contento com temas delicadíssimos, como o casamento entre homossexuais, a questão dos símbolos religiosos nos prédios públicos e os movimentos separatistas e de convergência (com a Igreja Católica) em seu seio. Será que ela conseguirá? Meu palpite é que sim. A Inglaterra, onde Estado e Religião oficialmente se misturam, contraditoriamente, é hoje um dos países mais adaptáveis e tolerantes que existem. O que desmente os radicais – sejam carolas ou ateístas – de plantão.

[1a. PARTE]
A Semana Santa está chegando. Que tal, então, mudarmos suavemente de temática? Um pouco de Religião e Direito, misturado com Literatura e Cinema, cairia bem? Minha sugestão: dois dedos de prosa sobre a curiosa Igreja da Inglaterra (“Church of England”).

Comecemos com um registro sobre o momento histórico-político do nascimento da Igreja Anglicana (também conhecida como Igreja Episcopal, nos EUA e na América Latina, embora a equivalência não seja completa). Era um dos períodos mais tumultuados da história europeia e da Igreja Romana: plena efervescência da Reforma, protagonizada por Martinho Lutero (1483-1546) e suas 95 teses (de 1517), com o Papado também entrelaçado nas políticas e nas guerras das poderosas casas reais da Espanha e da França e do Sacro Império Romano-Germânico.
Henrique VIII, criador da Igreja Anglicana, retratado por Holbein

Católico fervoroso até então, o Rei inglês Henrique VIII (1491-1547), à falta de um herdeiro homem para dar continuidade à casa “Tudor”, desejava anular o seu casamento com a espanhola Catarina de Aragão (1485-1536), ficando assim livre para casar com Ana Bolena (1501-1536). Após uma tentativa malograda perante legatários do Papa Clemente VII (1478-1534), em 1534, por iniciativa de Henrique VIII, a Igreja da Inglaterra separa-se do Papado Romano, tendo agora o próprio Rei como autoridade máxima. Casamento feito, claro (o segundo de meia duzia desse rei casador). E, com o passar dos anos, muitas cabeças rolando, entre elas, as da própria Ana Bolena, do poderoso Cardeal Wosley (1471-1530), do escritor, jurista, estadista e santo Thomas More (1478-1535) e de Thomas Cromwell (1485-1540), que foi, talvez, o grande arquiteto, sob ponto de vista jurídico, da primeira fase do cisma religioso. Todos eles foram, de algum modo, acusados de traição. Mas traição, à época, era o que o Rei ou seus advogados “decidiam” ser. Em seguida, o herdeiro homem de Henrique VIII, Eduardo VI (1537-1553), anglicano, reinou apenas por 6 anos. Foi sucedido por Maria I (1516-1558), filha de Catarina de Aragão e católica fervorosa. A reconciliação entre a Inglaterra e a Igreja Romana é feita. Mas o reinado de Maria também é curto (cerca de 6 anos). Sobe ao trono Elizabeth I (1533-1603, filha de Ana Bolena), que reina por 44 anos e consolida, com o estabelecimento de uma doutrina de via média entre o Catolicismo e a Reforma (de viés calvinista, acima de tudo), a Religião Anglicana. E esse complicadíssimo caldeirão histórico, como era de se esperar, deu ensejo a séculos de intolerância e perseguição religiosa (que só veio a diminuir, gradativamente, a partir do século XIX).

Tudo isso não poderia ser feito sem uma legislação que lhe desse amparo (e aqui entramos nós, os supostos “juristas”). O “Ecclesiastical Appeals Act 1532” proíbe apelações ao Papa em religião e outras matérias, fazendo assim do Rei, indiretamente, a autoridade máxima em tais questões na Inglaterra. O “1º Act of Supremacy 1534” expressamente reconhece o Rei como a autoridade máxima da Igreja da Inglaterra e dá outras providências. Ambos são do período de Henrique VIII. Já no período elisabetano, temos o “Act of Uniformity 1558”, que define as regras de culto na forma do “English Book of Common Prayer”. Em seguida, vem o “2º Act of Supremacy 1559”, que substitui o primeiro, após o período de catolicismo do tempo de Maria I. E, por fim, os “39 Articles of Religion”, de 1563, historicamente definem a Religião Anglicana como um meio termo entre o Catolicismo e a doutrina calvinista. Num momento seguinte da história, em 1611, a esses diplomas legais soma-se a famosa Bíblia do Rei Jaime (“King James Bible”) que, reconhecidamente, é um dos mais importantes documentos da língua inglesa, tendo um papel fundamental na consolidação do Anglicanismo como religião oficial do Reino. Devido à escala da sua produção e ao sucesso da sua aceitação, ela acabou por tornar-se a versão “oficial” da Bíblia para o mundo de língua inglesa (sobre a “King James Bible”, vide a crônica “A biblioteca e a Bíblia”).

Para quem quer conhecer essa história/estória de modo mais suave (e sem um completo rigor histórico), sugiro, porque faz muito sucesso por aqui, a série de romances históricos, sobre a dinastia “Tudor”, de Philippa Gregory (1954-): “The Other Boleyn Girl” (2001), “The Queen’s Fool” (2003), “The Virgin’s Lover” (2004), “The Constant Princess” (2005), “The Boleyn Inheritance” (2006) e “The Other Queen” (2008). Sei que muitos desses títulos, senão todos, já estão disponíveis em português. “The Other Boleyn Girl” (“A outra Bolena”), aliás, foi adaptado para o cinema em 2008, com as belíssimas Natalie Portman e Scarlett Johansson, respectivamente, interpretando as irmãs Anne e Mary Bolena (portanto, vale a pena!). Para quem quer algo mais denso, uma opção é “Wolf Hall” (2009), de Hillary Mantel (1952-), sobre o qual já falei aqui (vide a crônica “O importante é ter meta”). É uma biografia romanceada da vida de Thomas Cromwell, o principal ministro do Rei Henrique VIII. Com ele, Mantel ganhou o “Booker Prize” de 2009, o mais importante prêmio literário para uma obra de ficção, em inglês, no âmbito dos países da Commonwealth e da Irlanda. Por fim, sugiro a maravilhosa série de TV “The Tudors”, com um excelente Jonathan Rhys Meyers no papel do Henrique VIII, que, tenho certeza, estava passando na TV Brasileira dia desses. Na verdade, ficção é o que não falta abordando as vidas de Henrique VIII, das Bolenas, do Cardeal Wosley, do grande Thomas More e outros menos votados.

Mas, voltando à realidade, a quantas anda hoje a Igreja da Inglaterra? Bom, isso é assunto para a nossa próxima conversa.
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.Marcelo Alves Dias de Souza é Procurador Regional da República, M1estre em Direito pela PUC/SP e Doutorando em Direito pelo King’s College London – KCL
postado por O Santo Ofício
abril 16, 2012
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