quinta-feira, 26 de outubro de 2023

 A CAUSA ABOLICIONISTA

Ivan Maciel de Andrade, Jurista e escritor


Em 14 de maio de 1893, cinco anos após a sanção da Lei Áurea que aboliu a escravidão no Brasil, pondo fim ao longo período de “opróbio e opressão” da “raça” negra em nosso país, como disse em discurso o abolicionista José do Patrocínio, Machado de Assis escreveu uma crônica na “Gazeta de Notícias” (da série “A Semana”, 1892-1897). A crônica começa contando que no dia anterior, bem cedo, “as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio”. Machado lamenta que o dia tivesse amanhecido com “o chão molhado” e “o céu feio e triste”. Constata poeticamente: “o sol é, na verdade, o sócio natural das alegrias públicas”. Passa, então, a recordar o dia em que foi sancionada a Lei Áurea. É um raro e importante texto de grande valor memorialístico.
Segundo ele, “houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei que a regente sancionou, e todos saímos à rua.” E enfatiza a seguir: “Sim, eu também saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio”. E num rasgo de entusiasmo: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto.” A história registra que as festas se prolongaram por uma semana. Machado esteve presente em todas as comemorações, comparecendo inclusive a uma missa campal de agradecimento à princesa Isabel. Consta que “foi orador de uma homenagem que os funcionários do Ministério da Agricultura fizeram a um conselheiro do imperador” (“Para conhecer Machado de Assis”, Zahar, 2005, de Keila Grinberg e outras autoras). Poemas de diferentes autores, entre eles um de Machado, “impressos em papel cor-de-rosa, foram distribuídos à população”. Como se vê, Machado se incorporou ao “delírio” das ruas. 
O “Memorial de Aires” (1908), seu último romance, tem muitos traços autobiográficos, transpostos para o plano ficcional. Nele, o Conselheiro Aires, uma espécie de “alter ego” de Machado de Assis, pois corresponde à imagem que ele construíra ao longo do tempo para si mesmo, afirma, em seu diário, que embora não fosse “propagandista da abolição” sentira “grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente.” Diz que “estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral” e narra: “Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali ofereceu-me lugar no seu carro” que ia participar do “cortejo organizado para rodear o passo da cidade, e fazer ovação à Regente.” O Conselheiro confessa que esteve “quase, quase a aceitar, tal era o (seu) atordoamento”, mas por várias razões recusou: “Recusei com pena”. Machado se arrependera dos excessos cometidos anteriormente, com 49 anos, ou se manteve fiel, no “Memorial”, às características próprias do personagem que criara? O certo é que, antes mesmo da Abolição, Machado contribuiu para a libertação de grande número de escravos através de pareceres emitidos sobre a aplicação da Lei do Ventre Livre (“ninguém mais nasce escravo no Brasil”), de 1871, na condição de funcionário do Ministério da Agricultura. Um trabalho silencioso mas de grande eficácia e relevância.

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