A virtude da delicadeza
Padre João Medeiros Filho
Em
artigo publicado no Jornal do Brasil, em junho de 2006, o escritor Affonso
Romano de Sant´Ana opinou como necessária a virtude da delicadeza para redimir
a grosseria e a violência, que parecem dominar o mundo hodierno. O termo possui
larga sinonímia na língua portuguesa: afabilidade, atenção, amabilidade gentileza,
doçura, suavidade etc. Provém do latim castrense “delicatum”, significando
desligado, solto, leve, liberto, delicado. Este não possui amarras, é livre das
convenções e chega a possuir na linguagem bíblica o sentido de autêntico. Na
literatura veterotestamentária identifica-se com ternura. A esse respeito,
Carlo Rocchetta escreveu um belíssimo trabalho, intitulado Teologia da Ternura.
Importa
ser atento e sensível ao outro, à sua dor e alegria. O cristianismo ensina-nos
que a delicadeza é uma virtude bíblica, cuja razão de ser reside na essência de
Deus. O salmista deleita-se com a suavidade divina, exortando os que o leem ou
escutam: “Provai e vede como o Senhor é suave. Feliz o homem que nele se
abriga” (Sl 34/33, 9). Cristo, em suas recomendações aos discípulos, mostrando
que se deve amar até mesmo os inimigos, aponta o fundamento evangélico da
necessidade de sermos afáveis e ternos uns com os outros. Uma das novidades de
sua pregação consiste em afirmar que Deus é Pai, cheio de bondade, comiseração
e paciência conosco. O apóstolo Paulo, pregando aos gálatas, enumera entre os
frutos do Espírito “a brandura e a delicadeza” (Gl 5, 22). Elias experimentou
Deus na serenidade da brisa. “Ele é suave e doce”, afirmou Teilhard de Chardin.
Na verdade, a inefável presença de Deus é tácita e partilhante.
As
palavras de Cristo são plenas de sinais (inefáveis e sem parâmetros) da
delicadeza e doçura de Deus. “Vinde a mim todos vós que estais cansados sob o
peso do fardo e eu vos aliviarei. Sim, o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”
(Mt 11, 30). Cristo revelou-se sempre em seus encontros como uma pessoa solícita,
capaz de escutar e compreender. Quanta atenção com Zaqueu, a samaritana, a
mulher pecadora e até Dimas, seu vizinho de crucificação. Vários exegetas,
dentre eles Jacques Dupont em “Les beatitudes”, afirmam que a delicadeza é uma
bem-aventurança e traduzem por “bem-aventurados os delicados” (Mt 5, 5), em
lugar de mansos. Alguns Padres da Igreja, como Irineu de Lyon e Gregório de
Nissa, compreendem que a bem-aventurança da mansidão habita naqueles que se
mostram delicados e atenciosos com os irmãos.
Na
verdade, o mundo de tanta irritabilidade, impaciência, insensibilidade, falta
de tempo e agressividade caminha na contramão do Evangelho. Santo Antão,
anacoreta e pai dos monges orientais, ensinava que a falta de delicadeza com o
outro é sempre grave, pois lesa a natureza do ser humano, criado à imagem de
Deus. Este é terno e compassivo com todos. Quando seminarista na Bélgica, fui
designado para acolitar a missa do Cardeal Joseph Cardijn. Dele ouvi: “Pode-se
medir a espiritualidade de uma paróquia pela delicadeza com que se é tratado na
sacristia ou secretaria.” Simone Weil, judia convertida ao cristianismo, a
definia como “o sorriso do coração. Só a possui quem priva da intimidade com
Deus.” Quem é próximo do Altíssimo, percebe a sua afabilidade, sente o seu
toque doce dentro de si, sabendo reconhecer sua presença nos outros. E, se por
ventura, alguém não agradar aos nossos olhos, não deve esquecer sua beleza
interior, pois todos são templos do Espírito Santo (cf.1Cor 3, 16). Cada ser
humano é sacramento do Divino.
É conhecido o poema de São João da Cruz, dedicado ao Crucificado: “Oh! Toque
de amor, quão delicadamente me amas!” A experiência da suavidade divina convida-nos
a ultrapassar os limites da violência que nos desumaniza. Lembremo-nos dos recentes
acontecimentos, aqui no RN, beirando à barbárie. Por isso, a delicadeza faz-se
cada vez mais necessária, nos dias atuais. É preciso senti-la, como a mão de
Deus que nos acaricia, para poder irradiá-la aos nossos irmãos. Eis o conselho
contido no Livro dos Provérbios: “Uma resposta delicada acalma, enquanto uma
palavra áspera atiça o furor” (Pr 15, 1).
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