segunda-feira, 9 de abril de 2012

OSWALDO DE SOUZA E A MODINHA
postado por O Santo Ofício - abril 1, 2012
(Transcrito do NOVO JORNAL) [Natal, 01 de abril de 2012]

Por Franklin Jorge

Do tempo em que o maestro Oswaldo de Souza e Dona Lourdes nos recebiam para o almoço, jantar, ou simplesmente para tomarmos um drinque de fim de tarde, quase todos estão mortos. O professor Henrique Batista, o maestro Waldemar Henrique, e, mais remotamente, o escritor Luis da Câmara Cascudo [a quem chamava de Cascudinho] e Dona Dahlia, Grácio Barbalho e Dona Zoraide, as cantoras líricas Atenilde Cunha, dormem profundamente. Sobrevivemos poucos dessa época: Anna Maria Cascudo Barreto, Camilo Barreto e este escriba que volta pela memória a curta e acanhada Rua do Motor, no Areal. Uma noite, creio que encontrei lá, num jantar, o jornalista Vicente Serejo e Carlos Lira.

Oswaldo era um acontecimento. Trabalhara no Embu, em São Paulo, com o polígrafo Mário de Andrade, mas creio que dele não tinha boas lembranças, ao contrário de seu grande amigo, Câmara Cascudo, que era chegado ao autor de “Macunaíma”. Era cheio de manias e, apesar disso ou por espírito de contradição, odiava os velhos maniáticos; na verdade, tinha horror á velhice e ao provincianismo. Seria a sua principal mania não ter manias. Era um perfeccionista em tudo.

Compositor requintado, fazia parte de uma geração de músicos abençoada por predecessores ilustres, como Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone, Oswaldo Lacerda, Villa-Lobos… Era amigo de Waldemar Henrique, que o jovem Cascudo interpretava ao piano com virtuosidade, embora nunca tivesse estudado música. Como critico musical, muito arguto e sensível às individualidades, dizia-me Oswaldo do virtuose Cascudo que ele conheceu em pessoa, na cidade de Nova Cruz, no inverno de 1918.

Recebia como um grão-senhor, com distinção e savoir faire. Gostava de fabricar licores caseiros de pitanga e jabuticaba – sua especialidade -, apreciadíssimos por todos os que freqüentavam aquela casa de onde se descortinava uma nesga de mar. Gostava de conversar e beber uísque quando acompanhado. Ao tempo em que freqüentava a sua minúscula casa cheia de atrativos e raridades, como o quadro pintado por Anita Malfatti – que trouxe do seu tempo de servidor público em São Paulo -, conversávamos sobre a crônica secreta da cidade e sobre a esfera da música que dominou em sua mocidade laboriosa. Tínhamos em comum a amizade do maestro paraense Waldemar Henrique, autor de Tambatajá, que o visitava toda vez que passava por Natal voltando para a sua Belém.

Autor de algumas preciosidades musicais, como “Pingo d´água”, notável na interpretação de Atenilde Cunha, Oswaldo realizou notável pesquisa, coletando as canções dos barqueiros do rio São Francisco, publicadas em dois volumes pelo Ministério da Educação e Cultura. Mas, a sua grande pesquisa, a pesquisa que o consagraria, estava destinada a ser sobre a Modinha norte-riograndense, sobre a qual ele nos falava com entusiasmo e às vezes lia algum fragmento desta que seria a sua magna obra, como historiador da música. A obra que deleitaria a sua velhice, vendo o mar do seu terraço, enquanto a escrevia. Embora trabalhasse lentamente, à medida que ia escrevendo o livro, lia-nos o resultado de seus esforços, em reuniões que culminavam, geralmente, com um delicioso jantar. Assim, em 1984, chegou a publicar em plaquete “A modinha” pela Nossa Editora, pequeno fragmento de uma obra que se agigantava com o passar do tempo.

Pararia alguns momentos, para fumar o seu cachimbo e pensar quanto sua vida fora boa. Quanto a aproveitara, em seu hedonismo musical, elaborado segundo uma verve popular filtrada pela cultura e o talento do artífice. Era um grão-senhor e, como tal, recebia-nos, servindo-nos em seus cristais e Limoges, fumando e bebendo o seu uísque com espírito e vagar, enquanto Dona Lourdes, uma paulistana quatrocentona, duma dessas famílias que tem o nome em algumas ruas dos Jardins; educadíssima e elegante, cuidava para que tudo saísse a contento.

Nos últimos anos, após a morte de seu amigo Cascudinho, não foi mais visto pelas ruas de Natal. Às vezes, viajava para o Recife por alguns dias, segundo me contaria Henrique Batista, em almoço em Ponta Negra, que passara a vê-lo só muito raramente, por que não simpatizara com um seu novo amigo que passou a monopolizá-lo. Aos poucos, os outros também foram sendo contagiados por esse espírito de auto-exclusão e reduziram ou deixaram de visitar o velho músico modernista, que representara para a nossa cultura musical papel semelhante ao da poesia Jorge Fernandes. No caso de Oswaldo, um músico erudito trabalhando uma matéria popular eclética.

As Modinhas, combustível dos saraus e das tocatas do seu tempo de moço, seriam a alma nostálgica e melancólica de Natal, cidade que, desde o seu surgimento, amou a música e a exemplo de outras cidades de tradição portuguesa, teve os seus outeiros, suas cantatas e serenatas rituais. Pertencente a uma corrente musical nacionalista, Oswaldo pesquisou os ritmos populares e deles se abeberou para compor sua arte alegre e comunicativa. Fez aqui o que o maestro Waldemar Henrique fez pela música do Pará, sua terra natal cheia de magia e sortilégios florestários. Suas chulas marajoaras seriam, certamente, as Modinhas que tanto o encantara desde a mocidade, quando a cidade não se fartava nem enjoava de seus menestréis que saíam às ruas em noites enluaradas.

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