segunda-feira, 23 de abril de 2012

OITEIRO: UM LIVRO FUNDADOR
postado por O Santo Ofício

Transcrito do NOVO JORNAL [Natal, 22 de abril de 2012]

Engenho Oiteiro, pintura de Gogó

Por Franklin Jorge

“Oiteiro” – de subtítulo “Memórias de uma sinhá moça” -, livro publicado em 1958, um ano antes da morte da autora [1959], é, num certo sentido, um divisor de águas: antes de Maria Madalena Antunes Pereira, exceção de Nísia Floresta, nenhuma outra mulher escrevera no Rio Grande do Norte obra em prosa dessa magnitude e singularidade. É uma precursora.

Sem ser de fato uma estilista e ainda afetada pelo espírito da época, Madalena Antunes, oriunda da burguesia rural do Ceará-Mirim, produziu uma obra em seu gênero, única, sob dois aspectos: 1] inaugura entre nós uma tradição literária que singulariza sua terra-berço, onde nasceu em 1880; e 2] faz o contraponto literário e etnográfico do livro de Joaquim Nabuco [1849/1910]. Oiteiro, engenho de açúcar e alambique, no extenso e verde vale primordial de sua infância, está para a nossa literatura como Massangana para a de Pernambuco.

Em “Minha Formação” [1900], romance da sua própria vida – uma espécie de Bildungsroman -, Nabuco seria ele mesmo o herói, ao refazer, sob o concurso da memória, os anos marcantes e inesquecíveis da sua infância. Não há, no livro de Madalena Antunes, nenhum herói em particular, a não ser os poetas que ela cita amiudadamente e que pontuam sua obra e representam, para a autora de “Oiteiro…”, aquele papel que lhes foi prefigurado por Shelley, de legisladores do mundo.

Lendo-a, sinto a sideração de Lampedusa, autor que Madalena Antunes certamente não terá lido. Ambos escreveram sobre mundos desaparecidos que constituem misteriosamente a pátria mesma da infância, compreendida com emoção e inteligência.

Já “O Leopardo” [1958] tem o ocioso e analítico Príncipe de Salina, inspirado no avô de Giuseppe Tomasi di Lampedusa [1896/1957], o grande proustiano de Palermo. E, se podemos admitir heróis em “Oiteiro”, estes seriam o povo humilde e serviçal que Madalena Antunes decanta com apreciável ternura e emoção incontida, quando escreve, por exemplo, sobre suas escravas Patica, já de “ventre livre”, grande tecedora de fábulas, uma mulher alta, corpulenta e boa, que lhe contava estórias encantadas; e Tonha, uma menina ingênua, quase da mesma idade da “sinhazinha”, sua companheira de inesquecíveis brincadeiras. Sobre Trajano, Seu Cristino, o Tenente Onofre, seu avô materno, e o Boca de Uruá – o último dos acendedores de lampeões de rua – que desapareceu do Ceará-Mirim quando do advento da locomotiva e dos trens de passageiros e cargas, para ele, uma invenção do diabo. Nunca mais lhe souberam o paradeiro desde que a revolução industrial apresentou-se, retardatariamente, ao povo do Ceará-Mirim…

Cativa-nos, o livro dessa notável escritora do Ceará-Mirim, pela palavra fluente e a agilidade do pensamento que se desdobra em quadros sucessivos da sua mocidade numerosa, cheia de vida, na casa dos seus pais; como interna em colégio de freiras no Recife que lhe fornece uma espantosa galeria de tipos humanos, como “a Poliglota”, sobrinha de um bispo; a Tequinha; “a Cearense”, pois como o irmão – o grande satirista Juvenal Antunes, autor de um famosíssimo “Elogio da Preguiça” -, tem Madalena também extraordinário talento para a caricatura; como observadora arguta da vida doméstica e cotidiana numa sociedade rural escravocrata. Como escritora, Madalena tem uma notável acuidade psicológica que singulariza o seu relato de um mundo perdido, reencontrado pela literatura.

Como Lampedusa, Madalena não teve nenhuma pressa de escrever em livro suas lembranças da mocidade, e o faz após esmerilhar e escandir cada fato e sentença; cada pormenor de vida que a empolga e vivifica pela palavra cada protagonista ou figurante desse pequeno mundo erigido pela memória. Lampedusa conta-nos a história da transição da aristocracia para o populismo; Madalena, para uma época que redimensionou o país. Madalena e Lampedusa viveram muito e escreveram pouco. Porém o fizeram, na maturidade, numa comunicação intensa e lúcida.

Madalena embebe as páginas do seu livro com aquele “leite da ternura humana”, como diria Shakespeare; num livro que traduz com nitidez e fluência o “romance de formação” de uma brasileira nascida em 1880, no Engenho Oiteiro, no Vale do Ceará-Mirim, contemporânea da abolição da escravatura e da agônica monarquia. É a única “sinhá moça” a usar a memória para a reconstituição de uma época histórica, a partir do seu microcosmo existencial. Suas memórias transcendem a geografia do vale uberoso, documentam e perenizam fatos e costumes então vigentes.

Madalena não conheceu o mítico fausto das jóias, das sedas, dos carros de luxo que percorriam as ruas e estradas do Ceará-Mirim que viram seus avós. Nem os que brilharam no Segundo Império, com elevados cargos e política elevada.
____________________
Fragmento do livro “Leituras Potiguares” v. 2-3 [inédito]




Nenhum comentário:

Postar um comentário