quinta-feira, 16 de outubro de 2025

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

 



Texto de MÁRCIO DE LIMA DANTAS

1. Kelline Lima: linhas sinuosas e orgânicas como arquétipos do feminino O coração alegre aformoseia o rosto, mas, pela dor do coração, o espírito se abate. Provérbios, 15:13 1. Kelline Lima (27.05.1973) nasceu em Natal. Assim, desde menina, já revelava seu pendor para o mundo da arte, mesmo porque havia na família alguns parentes que eram artistas. Isso já refrata mais explicações, pois tudo indica que nascera com o condão que impulsiona determinado atributo, ou seja, a potência de contemplar a realidade não como está quedada no nosso entorno, mas a partir de figuras abstratas, como as mandalas ou os desenhos em puro branco imitando rendas de bilro. 

Assim, sua inclinação para gestar uma outra realidade — esse outro real pertencente à arte, com seus modos de ser — não demora a chegar, pois desde miúda o desenho e seus elementos definem-se de uma hesitante própria gramática; já integravam a forma de ser, como se fosse espécie de exercício do que viria a configurar seu discurso estético. Suas séries são parcas na temática, contudo, resplendem de uma sintaxe configuradora de uma dicção fácil de apontar como pertencente ao seu trabalho. 

Com efeito, pensamos que é interessante citar os meios manuseados para lograr êxito por meio de uma geometria (do Imaginário), o que remete ao feminino. Desse modo, é possível observar as formas orgânicas, metade de rostos femininos, as mandalas e as rendas de bilros em geometrias sinuosas. Para que isso venha a ser determinada figura ou personagem, eis que temos principalmente a caneta Posca branca e a acrílica sobre tela. Mas isso não basta, haja vista a multiplicidade de obras resultadas de uma enorme quantidade de técnicas. 

2. Uma das mais belas séries da artista é um conjunto de mandalas com seus traços sinuosos e a obrigatória simetria radial, simbolizando, em religiões como o Hinduísmo ou Budismo, a evocação de manter uma concentração em determinado lugar durante o processo de meditação. Os budistas fazem as mandalas com areia fina e colorida, para então desmanchá-las, demonstrando a impermanência de tudo o que existe no universo. Só o que é permanente é a impermanência. A técnica de construir uma mandala é um refinado pontilhismo, usando a pintura em acrílica sobre MDF, o que causa um efeito de uma magia que nos conclama a refletir sobre a terra, os homens, os animais e as plantas, como um sistema em suas partes interdependentes. Assim, movem-se o céu e as estrelas, com seu sol e sua lua. 

É interessante como a imagem do sistema nos conduz a uma simbólica de que tudo se encontra em conexão. Talvez não seja tão difícil encarar como uma verdade essa assertiva, visto que, no cotidiano, acabamos por sentir que os cinco sentidos não bastam para obtermos a compreensão de certos fenômenos da realidade. Falo da intuição, habitante das regiões mais profundas do nosso ser. Ela pode ser consultada como “coisas do coração”, pois é lá onde estão chantados os nossos Oráculos interiores ou elementos tais como fármacos que nos curam, que redimem o espírito, que amenizam os achaques do corpo. A lógica da mandala é bastante interessante. Seu princípio consta de um ponto central, possibilitando que possa girar esse círculo ao redor do raio. Ao realizar esse giro, haverá uma mesma semelhança das partes que irão ocupando outro lugar. 

A mandala, em suas formas concêntricas, representa o universo. Para os que seguem religiões, há uma aura em tudo, intercambiada a uns e outros, fazendo nada ser coincidência, mas algo que não conseguimos explicar. A mandala busca representar sentimentos ou emoções, chafurdando nas regiões mais profundas, buscando respostas ao que sentimos e não sabemos os contornos do que nem sempre tem nome, seja de energia, seja de uma identidade que não sabemos explicar. Só nos concerne sentir pela linguagem do coração, também nominada intuição. Contemplar uma mandala é uma busca de si, uma resposta ou, pelo menos, riscarmos certos desenhos nossos interiores que apenas sentimos. 

3. Se quisermos selecionar qual a opus magnum das inúmeras séries de Kelline Lima, não há como contemplar um trabalho de envergadura extremamente diferente do que se faz nas artes visuais do Rio Grande do Norte. São as Rendas de Bilro, resultados do uso de caneta Posca sobre papel. 

Posso falar um pouco das origens e do desenvolvimento dessas rendas, resultado de costumes portugueses (em torno de 1560). Inicialmente, estavam vinculadas ao sacro e não ao profano. Digo assim, pois eram elaboradas nos conventos e serviam de ornamentação às alfaias e às toalhas para cobrir os altares durante a liturgia. 

Sentada na frente da almofada, com o pique (cartão com um desenho da renda a ser elaborada), espetado com espinhos de cardeiros e os obrigatórios bilros de madeira, com uma ponta em forma de pera, e na extremidade o fio muito fino vaisendo entremeado com uma agilidade que causa espanto, para, por fim, restar o desenho que estava no papel. Os fios são geridos pelo que chamamos bilros, como se fosse tecido com as mãos, visando a elaborar algo abstrato, exercitando os elementos que já citamos. O suporte maior é almofada de pano. Os demais entram como pontos a ser manipulados nas mãos ligeiras da rendeira. 

Importante lembrar que a tradição da renda de bilro encontra-se com mais frequência nas regiões litorâneas. O melhor exemplo é o estado do Rio Grande do Norte: dificilmente há alguma comunidade praieira que não produza rendas de bilro ou labirintos, que são comercializados nas cidades e apreciados pelas classes mais abastadas. Também se usa como parte ou detalhe de indumentárias femininas. 

4. Será coincidência o fato de nossa artista ter escolhido duas formas de arte que lançam suas fronteiras para as bandas do silêncio? O que parece são duas obsessões: as mandalas e as rendas de bilro têm uma identidade, ocupadoras de um mesmo lugar simbólico: o apreço pelo silêncio, contudo, sem haver algo que as una pela mesma causa. Faço saber que ambos, por acaso, requerem o silêncio para sua feitura. Como já disse, a mandala está relacionada à meditação, quando do seu contemplar por alguém. De sua parte, a renda de bilro também está associada a uma mulher sozinha com sua almofada, concentrada em um silêncio que parece se evadir do que sucede no seu entorno, pouco interessada no movimento e nos sons ao seu redor. 

Não creio em um puro acaso, em algo não previsível; penso muito mais em termos de duas imagens, dois signos, dois arquétipos manifestando-se, vindo à tona das regiões abissais do ser, das regiões mais profundas, a que nem nós mesmos temos acesso. Sucede que edificar qualquer objeto de arte de qualidade provavelmente emana desses lugares. Não quero deixar a razão de lado; quero fundir a razão e o sentimento, no momento em que temos uma pessoa assinalada para dar forma, para insinuar outro conteúdo que não apenas esse contrato inventado pela cultura com a realidade. 

A artista visual Kelline Lima teve sua porta riscada para haver uma separação dos demais seres. Não se trata de classificar a pessoa como superior ou inferior. Ela é tão somente uma artista visual de grande capacidade de se reinventar, sobretudo em seus trabalhos com as rendas de bilro, não com base em como trabalham as mulheres, mas edificando, por meio de uma caneta e de um papel, o que fora há muito uma tradição que ainda permanece, como se fosse uma tocha que não quer se apagar.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

 

“Tempo de calar e tempo de falar”

Padre João Medeiros Filho

O descompromisso com a verdade é cada vez maior. Nutrem-se a divulgação de notícias falsas e a manipulação de informações, em função de conveniências e interesses escusos. As tecnologias comunicacionais facilitam opinar sobre todos e tudo. Uma vez a verdade comprometida, a sociedade perde o rumo, dificilmente encontrando caminhos promissores. Tudo tem seu tempo certo, “tempo de calar e tempo de falar” (Ecl 3,1; 7). Quando se deve falar? E quando é oportuno e eficaz calar-se? São Gregório Magno ensinava: “Seja discreto no silêncio e útil com suas palavras, para não falar o que deve calar, nem silenciar quando é necessário falar.” Sobre os pilares da fala e do silêncio fundamentam-se a sociedade, a cooperação mútua, a defesa da Justiça e do Bem.

Hoje, multiplicam-se escolas de oratória, imitação dos retores da Grécia e Roma antigas. No entanto, inexistem cursos para ensinar o que convém ou se necessita dizer. Ao se utilizar a palavra de modo superficial, comprometem-se os entendimentos, alimentando-se atitudes pouco eficazes para gerar o Bem. Assim, a sociedade permanece empobrecida, prejudicando o exercício da cidadania. Expressar-se com superficialidade faz com que os sistemas linguísticos disponíveis, em vez de contribuir para a aproximação, acabem construindo uma nova Babel, aprisionando a cidadania na confusão. É lastimável, quando a fala de quem representa o povo é permeada por mediocridades, sofismas, mentiras e narrativas. Inaceitável priorizar-se somente o interesse de partidos políticos ou grupos ideológicos. Lamentável, quando se objetiva somente conquistar certas metas, alheias ao bem comum. Deplorável presenciar as relações familiares, profissionais, políticas ou governamentais orientadas frequentemente por parâmetros de frivolidade.

A incapacidade para falar o que é preciso, isento de inverdades, é sinal de uma falha grave na condição ética e moral do indivíduo e da sociedade. Quem tem a coragem de viver e falar sob o manto da verdade (algo raro nestes tempos de tantas manipulações) contribuirá para a formação de cidadãos autênticos. As comissões parlamentares de inquérito, tendo em vista as inverdades e falta de compromisso com a veracidade, exigem do depoente um juramento de dizer sempre a verdade. Entretanto, Pilatos já tinha dúvida a respeito disso, ao questionar Jesus Cristo: “Quid sit veritas?” (O que é a verdade? – Jo 18, 38).

Hoje, especialmente, fala-se para agradar ou desconstruir, mesmo havendo incoerência com as próprias convicções. Certa vez, ouvi Dom José Delgado, indagando do saudoso Monsenhor Walfredo Gurgel o que ele achava mais difícil como político. Dissera-lhe, incontinenti: “Viver o Evangelho.” Este determina: “Seja o vosso sim, sim; e o vosso não seja não” (Mt 5, 37). E, em seguida arrematou: “Infelizmente, quando os políticos dizem sim, significa talvez. Quando afirmam talvez, quer dizer não. E se dizem não, certamente não são políticos.” Em certas situações, a verdade é dita pela metade para alcançar objetivos pouco nobres. Opiniões e juízos são emitidos sem o conhecimento adequado da realidade, prejudicando a promoção da justiça, prevalecendo o subjetivismo e vantagens de alguns. Fala-se a bel prazer para enaltecer ou destruir pessoas. Recordo-me de tempos no Ministério da Educação. Havia uma autoridade que costuma me solicitar a redação de três textos (despachos, pareceres, pronunciamentos etc.): um concedendo, outro indeferindo e o último “enrolando”. Isso é frequente na vida política e administrativa, plena de subterfúgios e conveniências e ausência de verdade. Faz lembrar Millôr Fernandes, ao dizer: “As pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades.”

Mister se faz aprender a falar e calar-se em sociedade. Nesse sentido, vale remontar ao conceito helênico de “parresia”, dinâmica da linguagem comprometida com a verdade, imprescindível para uma autêntica democracia. A postura do apóstolo Paulo pode inspirar modos nobres de se lidar com a fala. De forma peremptória, assim se expressa na Carta aos Gálatas, manifestando sua coerência e autenticidade: “Tenho eu buscado a aprovação dos homens ou a de Deus? Se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Deus” (Gl 1, 10). O discípulo de Cristo, segue o que Ele proclamou: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).