quinta-feira, 11 de setembro de 2025

 Texto do Prof. Márcio de Lima Dantas




Carlos Gomes: um naïf registra e exulta uma pintura lúdica 

O homem benigno faz bem à sua própria alma, mas o cruel perturba a sua própria carne. Provérbios, 11, 17 1. Carlos Gomes (Natal, 10.09.1939) é professor aposentado do curso de Direito da UFRN, sendo professor emérito. Após a perda da esposa, para se evadir da saudade e da solidão, bem como de um trabalho de luto comprido demais, que se instalara no seu espírito, começa a pintar. Consabido é que o tempo do nojo ou do luto tem uma expectativa de duração, não há consenso, mas quando passa mais de um tempo de se erguer e opta por prosseguir pela vida, sujeita a outras atribulações, instala-se uma quietude interior, porém domada pelos barbantes da razão, pela sabedoria, pela conversa com outros que passaram pela mesma situação, assim como perdoar a pessoa querida que se foi, mas também se perdoar com relação a ela (foi melhor assim? estava sofrendo em demasia? O lídimo amor libera o enfermo para que descanse na eternidade). 

Creio que foi esse fenômeno que o fez se interessar pela pintura. É perceptível um elemento narrativo nas telas, fazendo parte do que houvera como cotidiano ou buscando, nos ícones da Igreja Católica, guarida para uma alma apunhalada pela vida, chegando sem nenhum aguardo. A vida é traiçoeira. Tânatos, a morte, parece insaciável na sua ânsia de ceifar a seara humana. A morte é autossuficiente, não precisa de trabalhadores para a sega do humano, fazendo valer seu baralho de quem é o próximo a partir para onde não sabemos onde (provavelmente para lugar nenhum, pois ergue sua morada nos corações de quem amava a pessoa que se foi). Carlos Gomes chegou a lançar um livro sobre sua experiência de vida: Eu, pintor? Durante o lançamento do livro, houve uma grande exposição individual no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. 

Seu estilo caracteriza-se como naïf ou ingênuo. Sucede que ocorre uma diferença entre ele e seus pares de tradição. Completamente autodidata, seu desenho se inscreve primitivo, no sentido da não preocupação com o desenho acadêmico ou com o que combina ou não na paleta de cores. É uma pintura liberta dos paradigmas perpetrados pela tradição. 

2. Remete mesmo à escola a que se filia, a naïf. Esse estilo de pintura sempre seguiu em paralelo às chamadas Belas Artes, caracterizando-se por refratar os paradigmas dos estilos históricos chantados pelo Renascimento. Consolidou-se somente no início do século XX, com a aceitação de Henry Rousseau, revelando-se a admiração por sua obra, carimbada de legitimidade por pintores das vanguardas, sendo estes considerados dignos de participar dos salões que eram muito comuns na época. Podemos arrolar um dos grandes pintores desses tempos: Gauguin foi um dos primeiros a reconhecer Henry Rosseau como legítimo, em nada diferente dos demais, com seus títulos da plêiade das Belas Artes. Ele é o mito fundante que fez reconhecer o naÏf e tornar esse estilo com o mesmo status dos conhecidos na época. 

Por exercer uma pintura que não manuseava os cânones da tradição, com vários estilos históricos, — consoante o Ar do tempo —, até as vanguardas, houve recusa do público e da crítica. Causou estranheza misturar esse artista com os dos salões, que estava mais para o primitivo (Faço saber que todo bom livro de História da Arte registra o papel de Henry Rousseau e sua incorporação no seio das artes como compreendemos hoje. O naïf tem seu lugar e seu valor). 

Talvez a principal caraterística da obra de Carlos Gomes seja um elemento que faz reconhecer uma tela como naïf: a ausência de perspectiva. Existe tão somente comprimento e largura. Quase todos seguem essa regra geral. 

Com efeito, em Carlos Gomes, é possível contemplar uma espécie de “grau zero da perspectiva”. Mesmo os naïfs mais “raiz”, digamos assim, resguardam algum resquício de profundidade, que se soma ao comprimento e à largura. Vou dizer o que se segue apenas para efeito didático: talvez, como cânone obrigatório demandado pela religião, a representação nos túmulos dos egípcios, pintando as classes dominantes, o cotidiano e as guerras, não apresentava a perspectiva de jeito qualidade, mesmo por que a geometria, como reconhecemos hoje, ainda não tinha aparecido nos desenhos das artes até o Renascimento (apareceu nos primórdios do século XV, fruto de pesquisas de alguns pintores e matemáticos). 

3. Uma grande parte do que produziu caracteriza-se como arte sacra, haja vista a quantidade de retratos de santos ou mesmo de igrejas, ressaltando a beleza da arquitetura, tais como: Matriz de N. Sra. de Santana, Igreja de N. Sra. do Rosário e Matriz de Pau dos Ferros. Com relação à retratação de santos, podemos observar: N. Sra. das Graças, N. Sra. do Líbano, São Pedro, São João, Petrus (Pedro pescador), São João com um cordeiro, três telas retratando São Francisco. Há outra retratando dois jesuítas, ambos estão serenos, sem a pérfida malícia inerente a alguns humanos. Há uma aura de quietude interior; parece que buscam apresentar-se e não converter alguém. A simplicidade dos dois exulta uma ingenuidade sem afetações nem artifícios, buscando cambiar com os semelhantes a beleza da vida e seus momentos nos quais a alma apascentada queda-se em um torpor de ausência de atribulações interiores contra si mesma (isso é mais comum do que se pensa: a autossabotagem). 

A maneira como retratou esses diversos santos recusa o hieratismo na figuração dos santos e seus respectivos atributos. Pelo contrário, há uma contemplação plácida no olhar e na posição em que se encontra. É suficiente comprovar essa assertiva nos olhos e no vinco gracioso da boca. Podemos observar os retratos de São Francisco para perceber esse semblante genuíno, que a nada nem a ninguém ameaça, apenas se compraz, apenas parece buscar como funciona a essência que o cerca. 

Como podemos constatar, ele retrata uma Igreja Católica não dotada de punição, nem de tornar a noção de pecado como um dos principais dogmas, talvez seja o que mais busca enfatizar entre os ritos e obrigações, opondo-se a um Deus implacável, que busca e vigia o seu rebanho. Há todo um cabedal de intercorrências a receber o devido castigo, a punição e a paga por não ter se comportado de determinada maneira na enciclopédia dos pecados. Curioso que isso não vale para a classes dominantes. Considerando tudo o que há de gente, na verdade, isso não passa de Ideologia, quer dizer, a etiqueta social com seus maneirismos e afetações presentes no comportamento das classes dominantes. 

A Ideologia faz crer que o ser e o estar dos dominantes, a maneira como propalam seus valores e supostamente se comportam, em um manual abstrato, apenas deixa implícito como deve ser e, caso se rompa, segue a punição. Bem claro que é um monte de filigranas, ou seja, o que foi historicamente construído faz crer que isso tudo é natural. O problema é que a maioria da população acredita nessa falácia. Contudo, um país cheio de escândalos traz uma Brasília com fôlego enorme para toda uma sorte de pilhagem ao patrimônio público. Há também, como última moda, o baticum dos neopentecostais, migrados da Igreja Católica e fazendo uma espécie de ensaio de escola de samba. Quem viver verá (sempre pode ser ainda pior). 

4. Com relação a Jesus Cristo, pontuou algumas das estações da Via Dolorosa bem como eventos da sua vida: Assunção; Ressurreição; Retirado da cruz, nos braços de sua mãe, Maria; Nascimento em Belém com os três Reis Magos; também retratou a trindade no céu (Jesus, Pomba do Espírito Santo, Deus e Maria ajoelhada embaixo). 

Tudo o que vem a ser sacro na pintura de Carlos Gosmes há de se pensar muito mais em desenhos e pinturas, cores, nomes, evocação de um mito com mais de dois mil anos. Trata-se de arte, nunca de religiosidade, assim como sua forma de apresentar tais lendas, quase sempre sem afetação nem exagero. O que o mito necessita para se fazer assumir e perpetuar seus arquétipos é ser executado, ritualizado e repetido, por exemplo, a liturgia (missa) da Igreja Católica. É sempre a mesma coisa, e é assim como o mito opera, para escorrer em direção à História, e não o contrário, como se convencionou acontecer. Esse parece ser o vero cortejo de signos, símbolos, imagens: a História encontrando personagens para serem encenados seus autos e dramas no palco da vida e das comunidades. É possível constatar histórias subliminares nos acontecimentos maiores da polis; os papéis são distribuídos anonimamente e o palco da vida trata de encenar histórias do arco da velha. 

5. Consultando um dicionário, encontrei uma bela definição da palavra lúdico: “que faz alguma coisa simplesmente pelo prazer de a fazer”. Não precisa ter noção do que é pintura e suas técnicas, suficiente permanecer algum tempo diante da tela e aguardar uma energia que assoma vinda de dentro da gente. Há de se observar as partes: textura da tinta, paleta de cores, o referente que está retratado. Depois, junte tudo e organize em uma peça só, para que o sentido não somente apareça mas também possa ser tateado o seu espírito, a fim de observar que sentimento ou emoção foram libertos das nossas entranhas. 

Quero dizer com tudo isso, trazendo para a pintura de Carlos Gomes, que suas pinturas reverberam esse prazer de ter elaborado suas pinturas. É inegável que o conjunto da sua obra não apenas ocupou o tempo com algo construtivo mas também aplacou certas feridas que nunca saram. É até bom dizer que algumas pessoas não colocam fármaco algum para que cicatrize, optam por conduzir até seu fim o amor que depositavam na pessoa que se foi. Mas cada um é um. 

Para encerrar este escrito, podemos, à guisa de análise e interpretação, nos deter sobre as telas que sugerem sua vida biográfica e sentimental. Há uma tela muito simples, uma casa no campo, que era conhecida como o casarão da localidade Estevão, em Açu. Isolada de tudo e de todos, amanha uma quietude interior. Há outra tela com o lugar onde funcionava a antiga faculdade de Direito, provavelmente onde se formou. 

Mas a mais bonita e rica dos melhores sentimentos é uma mulher saindo de uma casa para ir em direção à casa da frente, que havia comprado. É a esposa do nosso pintor, preparando-se para a inauguração de uma nova casa, quer dizer, um contentamento interior pleno de alvíssaras. A casa estava contraposta, com seu jardim, aos edifícios e seus apartamentos, feitos como uma colmeia, na frieza e indiferença, sem socialidade, sem vizinhos para conversar. A casa, quase sempre, tem uma narrativa a contar: nos móveis, quadros nas paredes dos ancestrais, no pomar e no jardim. Outrossim, a casa resguarda a sombra de um morto ou mais que um. Quem já viu velório em apartamento? A casa é longeva, é uma herdade ainda habitada pelo seu patriarca, rodeada por casas pertencentes aos filhos, na Rua Coronel João Gomes, 555.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

 

Cartas de Cotovelo (final do inverno de 2025)

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

            Na amplidão de dias vividos, muitos dos quais – os últimos, numa atmosfera de decepções e de saudades, resolvi romper a solidão do meu exílio voluntário e, apesar do chuvisco intermitente da antevéspera do dia da Pátria, e dar um pulo para minha outrora “Passárgada de Cotovelo” e ver como estão as coisas por lá.

            Cheguei na boca da noite, na companhia do meu filho Rocco José e só para arrumação, jantar, televisão e rede. Dormi bem, graças a Deus.


            Na manhã do dia seguinte, a primeira surpresa alertada por João Batista Jota, que dá sempre uma olhadela no imóvel – as orquídeas de Dona Therezinha, minha companheira de 71 anos de convivência, encantada em 31 de março de 2019 - estavam floridas por demais. Eram brancas, vermelhas, róseas e lilases, no contraste com o verde do seu entorno. O coração bateu mais forte! A chuva não deixou que fosse ver o mar e seus encantos. Continuei em casa fazendo o trivial.

            Pelas 9 horas ouvi o programa da rádio Mar e Campo, do meu amigo Octávio Lamartine, que abordou tema importante e atual do uso indevido da internet e da inteligência artificial. Em seguida alegraram-me naquele sábado as visitas da minha filha Rosa Ligia, seu filho Raphael com a namorada Hana e o cãozinho Tel.

Foto em preto e branco de grupo de pessoas na frente de um prédio

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

            Amanhece o dia 7 de setembro. Antes de descer para o desjejum, leio alguns livros de cabeceira e, um deles – “Além do Jornal”, do meu amigo e confrade Manoel Onofre Júnior trouxe-me caras lembranças de lugares e acontecimentos próximos à minha existência de jovem, causando-me emoções incontidas, o que motivou um telefonema para o autor para declarar a minha satisfação com a sua obra e parabenizá-lo por tão interessante trabalho. Ele ficou feliz.

            Como persistisse a chuva, tracei o programa de assistir, pela televisão, os diversos desfiles do Dia da Pátria, trazendo-me a memória do meu tempo de estudante, comandando a Banda Marcial do Ginásio Natal do Prof. Severino Joaquim da Silva, percorrendo as ruas da cidade, com cadência e firulas que inventávamos para destacar de outras bandas – Marista, Ahteneu e Escola Industrial, até o desfile oficial. Caminhando mais um pouco, lembrei o 7 de Setembro de 1959, quando estava no Exército Nacional e desfilei na Avenida Deodoro, com ardor e emoção de um esbelto infante que amava a sua Terra Amada.

            Obrigado SENHOR por dias tão ditosos. Que se repitam nos próximos, enquanto percorro o descer da ladeira da vida (86 anos no dia 10), ainda com o propósito de escrever outras Cartas de Cotovelo, com o sentimento de paz e amor.

 A humildade, uma virtude desprezada 

Padre João Medeiros Filho 

Segundo a Bíblia, a humildade é “caminho para a verdadeira grandeza” (Pr 22, 4). Atualmente, ela é pouco vivenciada. Cristo proclamou no Evangelho de Mateus: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). E ensinou que a observância dessa virtude é importante para segui-Lo. Sem dúvida, para vislumbrar a onipotência divina e a condição humana de criatura limitada, é preciso conhecer a própria natureza. O étimo humildade deriva do latim “humus” (terra), significando ter os pés no chão. De acordo com etimólogos, possui a mesma raiz de “homo” (ser humano). Humanidade e humildade são palavras irmãs. O poeta latino Horácio escreveu que “o homem é um ser com os pés na terra, mas os olhos voltados para o infinito.” Ele não deve perder de vista as suas origens: argila plasmada em vida racional pelo sopro divino, pleno de amor. Ao longo dos séculos, a Igreja nem sempre se mostrou humilde. Não raro, aparece historicamente associada ao triunfalismo. Em determinadas épocas, manifestou-se superior, impondo dogmas e verdades, ritos e tradições. Cristo veio propor, e não impor. “Se queres ser perfeito...” (Mt 19, 21), dissera Cristo a um jovem, mostrando que o cristianismo é uma opção de vida. Entretanto, a humildade desempenhou sempre um papel relevante na tradição cristã, desde suas origens. Os santos revelam sinais evidentes de humildade. O monge Antão refere-se a ela como “a primeira de todas as virtudes.” Para Santo Agostinho consiste no “verdadeiro remédio que nos cura”. É considerada pela tradicional Regra de São Bento o caminho de subida para Deus, constando de doze degraus, sendo ela o primeiro deles. Ela tornou-se tema marcante do pensamento cristão. Consta da maioria dos escritos de pensadores católicos, dentre eles, São Gregório Magno e o autor inglês (anônimo) de “A nuvem do não saber.” Os místicos Santa Teresa d´Ávila e São João da Cruz afirmam que a humildade é imprescindível para a gratidão e perfeição espiritual. Mesmo em momentos que possa ter parecido eclipsada pelo poder político-clerical da Igreja, ela continuou a encontrar um lugar de destaque na obra de grandes teólogos e santos, a exemplo de Tomás de Aquino, Boaventura, Francisco de Assis e Inácio de Loyola. Este pretendia, com Os Exercícios Espirituais, levar os fiéis ao grau de santidade, que implica num despojamento interior, no amor a Cristo, na vivência do Evangelho e jamais no pseudo prestígio ilusório que o mundo oferece. A humildade opõe-se ao brilho ilusório da fama e autossuficiência humana. É tema recorrente também na obra de vários autores contemporâneos, como Simone Weil, Emmanuel Mounier e Jean-Louis Chrétien. Tal virtude abrange realismo, verdade, modéstia e simplicidade, destoando de um mundo em que se exalta o poder. Anda na contramão de uma civilização que supervaloriza o ter em detrimento do ser. Distancia-se de uma sociedade que cria ídolos e ludibria indivíduos, pressionando-os a subir sempre mais na escala social para conseguir seus objetivos, mesmo em detrimento de muitos. Uma pessoa simples, mansa e humilde é motivo de discriminação e desdém no mundo de hoje. É considerada sem valor, tola e despersonalizada. Aos olhos de muitos não sabe aproveitar as oportunidades que a vida lhe oferece e se deixa manipular pelos outros. No entanto, é especial para Cristo, que desceu das alturas infinitas para habitar a terra dos homens, deixando a glória celeste para viver a pequenez das criaturas. O orgulhoso afasta-se de suas raízes e perde-se nas estradas da ilusão. O presunçoso repele, enquanto o humilde aproxima. Cabe lembrar Charles Chaplin: “Necessita-se mais de humildade do que de máquinas; mais de bondade e ternura do que de inteligência. Sem isso, a vida se tornará violenta e tudo se perderá.” Os humildes são discretos e mais próximos do caminho da verdade, sabedoria e gratidão. Já dizia Cora Coralina: “O saber a gente aprende com os mestres e livros. A sabedoria se adquire com a vida e os humildes.” É bom lembrar-se sempre do ensinamento transmitido pelo apóstolo Tiago: “Deus rejeita os soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6).

domingo, 7 de setembro de 2025